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"Anxiety is the dizziness of freedom"
Para que não haja margem para dúvidas: Woody Allen é um dos cineastas mais prolíferos, peculiares e talentosos da história do Cinema. Todos os anos, quando o verão dá as últimas cartadas e a sala de cinema começa a ser um cenário mais aprazível do que a areia e o mar sem fim à vista, habituamo-nos a ter em sala um dos seus caracteristicamente palavrosos e intelectualmente estimulantes filmes.
E há um certo jogo duplo em todo este processo. Entre a condescendência e a admiração pelo engenho de um maestro, sabemos que o que lá vem é a marca de um génio, mas também mais uma variação de algo que já vimos, onde o fator surpresa se reduz a pouco mais do que o elenco renovado.
Aprendemos a esperar que dele não venham filmes maus – afinal, Woody Allen é um resoluto exemplo de que não se desaprende a andar de bicicleta e há sempre um conjunto sólido de elementos de redenção. No entanto, sabemos que algumas das suas incursões são boas, outras menos boas, mas há ainda uma assombrosa quantidade daquilo que corriqueiramente designamos de obras-de-arte.
Patinando algures entre a primeira e segunda categoria, “Irrational Man” não é uma obra-de-arte.
Trocando um pastelão palavroso por poucas palavras, o mais recente filme do realizador nova-iorquino versa sobre Abe Lucas, um torturado e fatalista professor de filosofia que se envolve com uma aluna curiosa e fascinada pela sua carismática figura e uma outra professora de meia-idade descontente com as parcas ofertas da vida familiar tradicional. Um dia, um único ato existencial muda tudo – em Abe e em todas as relações que mantém.
Como uma série de outras obras da filmografia de Woody Allen, “Irrational Man” equilibra motivos sombrios na destreza de uma leviandade aparente. Repescando temas de “Crimes and MisdemeanorsCrimes e Escapadelas” e mesmo “Match Point”, Allen encontra ainda em Dostoyevsky uma inesgotável fonte de inspiração – aqui também em sentido literal, já que o filme é levemente inspirado em “Crime e Castigo” do autor russo.
Sobre o choque entre a teoria e a prática e a vida e as suas dores, o argumento, repleto de niilismo e moralismo na zona cinzenta, retalha-se numa ironia afiada e um núcleo cerebral delicioso. O problema apresenta-se quando o conteúdo filosófico e intelectual não consegue relacionar-se com substância emocional suficiente que nos invista.
É possível que este seja um dos filmes mais focados e inteligentes de Woody Allen, mas é talvez também esta arrumação pouco neurótica que contribui para a sensação de estarmos a ver um simulacro em vez de uma história. No final de contas, tudo parece meio maquinado e teatral.
Nas interpretações, e não primando pela subtileza na performance, Joaquin Phoenix encaixa tão bem em Abe quanto oreos com um copo de leite. Por outro lado, Emma Stone tem uma segunda oportunidade bastante mais inspirada num filme de Woody Allen, contribuindo para a construção da jovem Jill com um charme inocente de alguém que procura resposta às questões mais profundas da vida. No panorama secundário vale a pena destacar a estrela da matiné, Parker Posey, cuja insatisfeita professora de ciências é incisiva, amarga, triste e hilariante ao mesmo tempo.
Ainda no panorama técnico, vale a pena fazer uma melódica nota à banda sonora dominada por Bach e Ramsey Lewis Trio e ainda à fotografia leve e vibrante e Darius Khondji que entra em saudoso choque com o macabro do enredo, tornado o filme uma iguaria positivamente enganosa.
Como acontece com a generalidade do cinema de Woody Allen, não é para todos os gostos. Afinal, é tudo muito engraçado e honesto e relacionável com as nossas contendas emocionais e morais quotidianas, mas é evidente que este universo populado por intelectuais ligeiramente verborreicos que pensam que percebem a vida mas são péssimos a vivê-la não é a praia para todos.
Ao contrário de “Annie Hall”, “Manhattan” ou os mais recentes “Blue Jasmine” e “Midnight in Paris”, “Irrational Man” parece ser uma daquelas obras medianas entre os mais de 50 filmes que preenchem o vasto currículo de um Homem que transpira Cinema.
Não é, de todo, irracional desejar que o próximo seja um deleite irrefutável.
7.0/10
"All my optimism was an illusion"
“Num cenário idílico internacional, um homem mais velho (e neurótico) apaixona-se por uma encantadora mulher mais jovem” – quase podíamos adivinhar que estávamos num filme de Woody Allen. E estamos mesmo.
Estamos no final dos anos 20, e o homem é Stanley Crawford, um famoso e celebrado mágico mais conhecido pela sua persona de palco, o chinês Wei Ling Soo. Resmungão, arrogante e com uma grande opinião de si mesmo, o mágico inglês tem uma enorme aversão aos falsos espíritas que afirmam ser capazes de fazer verdadeiras magias. Persuadido por um velho amigo, Stanley dirige-se à Côte d'Azur com o objetivo de rebaixar uma jovem e sedutora vidente, a americana Sophie Baker.
Desde o seu primeiro encontro com Sophie que Stanley a considera como uma nulidade que poderá desmascarar num instante como estando a aproveitar-se da ingenuidade da família. No entanto, para sua grande surpresa e desconforto, Sophie é capaz de numerosas proezas a ler a mente e apresenta outros poderes sobrenaturais que desafiam todas as explicações racionais, o que o deixa completamente estupefacto.
É um atestado à atenção ao detalhe e lealdade ao período pela parte de Woody Allen que “Magic in the Moonlight” pudesse perfeitamente ser um filme perdido dos anos 30, e à primeira vista, parece mesmo que entrámos numa cápsula do tempo.
Debaixo da capa de comédia romântica ambientada à Riviera francesa jaz uma sucinta mas incisiva examinação sobre a fé e a razão, a ilusão e a realidade, o otimismo e o pessimismo e dinâmica relacional que advém da convivência de todas estas constantes dicotómicas.
Como habitual, o argumento é um guia de bem-escrever diálogos inteligentes e graciosos que, não se sentido particularmente naturais ou passíveis de habitar lábios na vida real, se adequam à natureza dos seus personagens e ao seu (neurótico) habitat circundante.
Colin Firth tem a tarefa dar consistência física à neurose e sarcasmo usuais aos protagonistas de Allen conseguindo-o em medidas inconsistentes mas crescentes – depois de um início conturbado e excessivo, a performance estabiliza e equilibra-se ao longo do tempo. Emma Stone confere o charme habitual que parece ter sido suficiente para a tornar uma repetente (o realizador já prepara o seu próximo filme com ela), mas a verdadeira estrela do pedaço é Eileen Atkins, a cítrica tia de Stanley cujo tour de force se guarda para uma cena em particular que envolve a aplicação de psicologia invertida.
Todavia, “Magic in the Moonlight não deixa de parecer, em todos os âmbitos e aspetos, uma entrada menor no cânone da Woody Allen. O enredo arejado tenta fazer os desvios para terrenos familiares de forma imaginativa, mas há pouca substância que suporte a afirmação de que esta é uma comédia (ou uma farsa) particularmente sólida.
As consequências de uma carreira tão prolífera como a do realizador americano (que lança, grosso modo, um filme por ano) é a irregularidade, especialmente patente nas últimas décadas. Por cada “Midnight in Paris” ou “Blue Jasmine” temos um ou dois “Scoop” ou “Magic in the Moonlight” – charmosos e nunca intragáveis, mas evidentemente menores. No caso deste último, não é particularmente fresco ou esforçado, parecendo até, por vezes, redundante e preguiçoso.
É como que um requintado amuse-bouche, que tem todo o glamour do auspício duma sumptuosa refeição, mas que não tem o complemento de um prato principal.
Não é óbvio ou particularmente pomposo, mas como filme de Woody Allen que é, tem o seu inegável charme. E, para todos os efeitos, e mesmo nas instâncias menos brilhantes ou memoráveis, um filme de Woody Allen nunca é uma perda de tempo (ou respeito pelo intelecto).
6.5/10
A Sony Pictures Classics lançou finalmente o primeiro trailer do próximo filme de Woody Allen, "Magic in the Moonlight", que deverá chegar aos cinemas portugueses a 4 de setembro.
Com um elenco que inclui Colin Firth, Emma Stone, Eileen Atkins, Marcia Gay Harden, Hamish Linklater, Simon McBurney e Jacki Weaver, a comédia romântica segue um homem inglês que é chamado para desmascarar uma possível charlatã espiritual. Passado no sul de França nos anos 20, o filme tem como pano de fundo as maiores mansões da Côte d’Azur, clubes de jazz e os lugares mais glamourosos da Era do Jazz.
"Anxiety, nightmares and a nervous breakdown (...) there's only so many traumas a person can withstand until they take to the streets and start screaming."
Woody Allen sempre escreveu bons papéis para mulheres, mas Jasmine parece ter sido agraciada com a magia da intemporalidade.
Em “Midnight in Paris”, Allen reconquistou muitos corações com a sua ode à nostalgia de um cinderella man que ao bater meia-noite mergulhava nos confins de Paris para acordar delirante no epicentro da explosão artística dos anos 20 e beber uns copos com F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Pablo Picasso.
Dois anos depois, a fantasia fica na gaveta, bem como o tom leve - mais para o humorístico do que para o dramático - para o realizador americano regressar a um tema que domina tão bem e que, ainda assim, tinha andado tão afastado da sua obra dos últimos anos: a neurose.
Tomando como inegável fonte de inspiração o clássico de Tennessee Williams – “A Streetcar Named Desire” – a queda (e subsequentes réplicas) de uma socialite desdenhosa é a base para a exploração da crise existencial e remoinho ilusório orquestrada por Allen.
“Blue Jasmine” é assim a sua poderosa declaração anual que se debruça sobre a exploração da loucura como uma expressão daquilo que alguém – neste caso, Jasmine – é. A harmonia entre a tragédia do drama do estado de coisas desta mulher e o humor negro que ocasionalmente surge respirando pelos seus poros é a grande arma do título, que a usa com orgulho e finesse.
A estrutura - bipartida e alternando-se entre o passado sumptuoso de Jasmine e o seu presente menos nobre - nem sempre proporciona o desenrolar narrativo mais fluído roubando, inclusive, várias cenas da sua completa recompensa emocional. O problema com a grande parte da obra de Allen dos últimos 15-20 anos é que o realizador parece reunir energia para algumas excelentes ideias, como quem organiza uma mesa de snooker para um grande e promissor jogo, dando depois uma potente tacada que enfia, de uma só vez, várias bolas, mas que acaba por deixar outras tantas à deriva.
Mas à sua maneira, “Blue Jasmine” encapsula na perfeição aquilo que é o todo da carreira do realizador – uma criatura imponente, nem sempre regular, mas que exige a nossa atenção. Porque nos momentos em que estamos prestes a dar-nos por vencidos no seu imaginário neurótico, ele carrega no acelerador e o que nos oferece é unicamente tocado pelo brilho da genialidade.
Como é costumeiro, muito do crédito de uma filme de Woody Allen é do próprio Woody Allen, mas aqui parece mais do que certo, imperativo mesmo, reparti-lo com Cate Blanchett, cuja criação é digna de figurar na resposta assertiva à pergunta: “o que é o trabalho do ator?”.
O enigma de uma performance tão eletrizante é profundo: como é possível tornar uma mulher tão egoísta e desprezível em alguém com quem nos conseguiremos preocupar ao longo de 90 minutos? Blanchett é ardente, comovente, perdida. O génio desta construção é que convém a urgência extrema das suas verdadeiras preocupações e a forma como vemos - como se de um límpido vidro se tratasse - que esta é uma mulher em guerra consigo mesma, a lutar com os fardos da realidade. Maior do que a vida, Blanchett arrebata os nossos corações com uma personagem que secretamente desejamos odiar, numa performance que está além do brilhante, e que fica à margem qualquer análise.
No elenco secundário, e estabelecendo um estrondoso contraste com a protagonista, é bom que não se deixe passar ao lado a presença cativante e casual de Sally Hawkins, a sua fabulosa química com Bobby Cannavale e a colaboração honesta, dura e surpreendente de Andrew Dice Clay, como o amargurado ex-marido de Ginger.
Há uma qualquer fusão de desespero e prazer que confere a “Blue Jasmine” um lirismo trágico irresistível – o que começa como uma espécie de caricatura ao elitismo social, termina num retrato vívido e cru sobre a miséria de uma alma quebrada e perdida, que se recusa a abandonar os resquícios de uma bolha que um dia a isolava da realidade.
Jasmine já não é a “mulher-troféu” mal a encontramos pela primeira vez, naquele voo para São Francisco, tagarelando incessantemente sobre o que foi e já não é. Mas de alguma forma, o estatuto de troféu continua lá, como algo criado à imagem da nossa mais profunda admiração. Este é um retrato e uma criação inolvidável e isso não está apenas escrito nas estrelas; está tatuado nas chamas e imortalizado na história do Cinema.
8.5/10