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Point-of-View Shot - The Diary of a Teenage Girl (2015)

por Catarina d´Oliveira, em 05.04.16

TheDiary2.jpg

 

"I had sex today... Holy shit"

 

Todos o vimos acontecer antes – ou por outra, tentar acontecer. É que a cena indie está pejada de tiros de pólvora seca quando se carregam os canhões da exploração do despertar sexual feminino. De facto, e apesar de as tentativas não serem propriamente raras, são escassos os exemplos que não se revelam demasiado moles ou genéricos ou por outro lado mal-intencionados na abordagem. Ora não nos parece de todo descabido iniciar esta análse assegurando que o assertivo e vigoroso filme de Marielle Hellner consegue fazer o que tantos outros apenas desejaram.

 

Minnie Goetze tem 15 anos, quer ser desenhadora de comic books e está a crescer no ambiente frenético da São Francisco dos anos 70, em plena ressaca do Flower Power. É uma típica adolescente em quase tudo, exceto no facto de descobrir o sexo com o namorado da sua mãe, com quem acaba por manter uma relação, mesmo depois desta o descobrir... Mas desengane-se quem visualiza Minnie como uma prima não muito afastada de Lolita. Minnie é entusiástica, é louca por sexo e não tem medo de fazer algo relativamente a essa situação, o que se coaduna na perfeição com o sentimento de emancipação e libertação sexual que se faz sentir ao longo de toda a película.

 

diary-of-a-teenage-girl.jpg

 

A base dos trabalhos é o romance homónimo e (semi-)autobiográfico de Phoebe Gloeckner, e ainda que a história de Minnie seja, de um modo geral, bastante previsível, é a abordagem do seu retrato, tão resoluta quanto refrescante, que o diferencia dos demais primos afastados.

 

Seria difícil de prever que uma tão confiante e arrojada produção surgisse das orquestrações de um maduro cineasta, mas a verdade é, de facto, que este é o primeiro filme dirigido por Marielle Heller. A abordagem desta peculiar comédia dramática sobre a nem sempre gloriosa transição entre o início da sexualidade juvenil para a assumida maioridade é absolutamente desarmante, tornando difícil relembrar um outro filme sobre o crescimento/adolescência (ou coming-of-age, à falta de um melhor termo na língua de Camões) tão apostado na manutenção de uma posição livre de julgamentos e críticas aos seus protagonistas.

 

Fundido numa paleta inspirada em polaroides e embebida numa banda-sonora apaixonada pelos anos 70, o filme mantém-se fiel às suas origens da B.D. ao incorporar algumas versões animadas de ilustrações da autora – o dispositivo que já não é novo nas lides indie ganhar aqui uma dimensão especial e intencional ao dar vida às fantasias febris de Minnie que, por sua parte, é também uma aspirante a artista gráfica.

 

The-Diary-of-a-Teenage-Girl_Still-5-0-2000-0-1125-

  

Bel Powley é absolutamente sensacional ao trazer Minnie à vida, numa performance excecionalmente corajosa e modulada. A sua inconstante protagonista é um ponto de desequilíbrio constante, podendo ser amorosa e inocente, para no momento seguinte se revelar quase cruel e manipulativa. É um poço de contradições que caminha entre a infantilidade e a “adultez”, a vulnerabilidade e a emancipação. Ela não é um cliché ou um poster ou uma figura de representação – é o desabrochar de uma jovem mulher disposta a conseguir o que quer, seja isso o que for.

 

Como uma mãe com sérios défices de capacidades maternais, Kristen Wiig vem reiterar o seu incrível talento para as lides dramáticas (que se vêm acrescentar ao seu impecável mas já bem conhecido e glorioso timing cómico). No entanto, o papel mais desafiante do plano secundário é inequivocamente o de Monroe, que se faz acompanhar do símbolo universal de tendências sexuais duvidosas: um bigodinho isolado. Correndo sempre o risco de caminhar perto demais de uma caracterização reles e tirana, nunca é vilanizado pelo argumento ou pela fantástica performance de Alexander Skarsgård, que apesar de lidar com o “boneco” mais difícil de criar empatia, consegue desenvolve-lo como alguém surpreendentemente amável para Minnie e Charlotte.

 

Globalmente, há níveis do questionável comportamento de Minnie que não são tão óbvios construtores da persona de uma mulher adulta e confiante, mas The Diary of a Teenage Girl é um inequívoco hino à emancipação feminina e à valerosa mensagem de necessidade de autoestima.

 

lead_960.jpg

  

Moralmente complexo e por vezes desconfortavelmente próximo de verdades desassossegadas, o filme de Hellner mantém uma honestidade fascinante, dura e frustrante – um espelho da própria adolescência. Aqui temos uma janela sem filtros do universo de sexualidade, manipulação e exposição franca de Minnie sobre a necessidade de ser desejada, amada e abraçada.

 

“Isto é para todas as raparigas quando tiverem crescido”, partilha Minnie com o seu fiel gravador de cassetes. Não sendo necessariamente um crowd pleaser no seu sentido mais tradicional, The Diary of a Teenage Girl tem toda a frescura, determinação e desembaraço para se tornar um marco nesse célebre sub-género de culto que são os filmes de crescimento.

 

E o tempo não deverá tardar a validar esta previsão.

 

 

8.0/10

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Point-of-View Shot - Trumbo (2015)

por Catarina d´Oliveira, em 23.02.16

TRUMBO-DEST.jpg

 

"What the imagination can't conjure, reality delivers with a shrug"

 

Se há coisa que não falta a Trumbo é um conjunto de intrigantes razões que edificaram a vontade que há muito trazíamos de lhe explorar os segredos.

 

A primeira é, por ventura, a mais óbvia: Bryan Cranston. Isto porque, apesar de já não ser uma cara nova nas lides de Hollywood, as performances que mais o marcaram no grande ecrã foram sobretudo secundárias. De O Resgate do Soldado Ryan, a Drive, passando por Argo, Contagion, e muitos outros, fica a sensação que Cranston não teve até aqui a oportunidade de explorar as suas máximas potencialidades dramáticas em Cinema, e talvez tenha sido o Walter White de Breaking Bad a ajudar a quebrar o enguiço.

 

Prosseguimos com o realizador Jay Roach que aqui embarca na sua primeira aventura dramática. Até aqui, a sua experiência ia pouco além das comédias de cariz físico e palerma de Austin Powers e a sátira familiar de Uns Sogros do Pior.

 

trumbo.png

 

Por fim, o elemento mais curioso, que é tão somente o objeto em observação macroscópica: Dalton Trumbo, um histórico argumentista da Era de Ouro de Hollywood, celebrado pelo engenho nas palavras, renegado pelas suas opções políticas – e enquanto é possível que o seu nome pouco dissesse a ouvidos destreinados, as suas obras deixam-se falar por si: Roman Holiday(1953), The Brave One (1956),  Spartacus (1960), Exodus (1960).

 

Estavamos oficialmente interessados, mas estaria Trumbo à altura das modestas mas sólidas expectativas que criamos?

 

O enredo ambienta-se, na sua maioria, aos anos 40, e temos encontro marcado com a carreira de sucesso do argumentista Dalton Trumbo. No entanto, e ao espelho do que ainda hoje acontece na indústria das montanhas-russas do sucesso e dos 15 minutos de fama, o seu estatuto de génio inabalável é fortemente bombardeado quando ele e outras figuras de Hollywood entram na lista negra pelas suas convicções políticas. Trumbo, que sempre se recusou a fazer segredo da sua posição política e social, juntamente com muitos dos seus pares, tornou-se assim vítimas da histeria do anti-Comunismo que reinou na América do pós-guerra, chegando, inclusive, a ser sentenciado a uma pena na prisão por desacato. A infame lista negra de “perigosos radicais” que viam o seu caminho interdito aos grandes estúdios não parou de inchar durante vários anos. Esta é, portanto, a história da sua luta contra o governo norte-americano e os patrões dos Estúdios, numa guerra pelas palavras e a liberdade, que envolveu todos em Hollywood, desde Hedda Hopper e John Wayne, até Kirk Douglas e Otto Preminger.

 

trumbo-4.png

 

Se isto vos parece a receita perfeita para um testemunho maçudo incognoscível sobre oposições ideológicas e políticas, podem ficar descansados: não é preciso estudar a vida de Dalton Trumbo antes do filme, e muito menos os princípios do Comunismo – desde que não esperem entender as suas raízes meramente a partir deste objeto cinematográfico.

 

De facto, Jay Roach inspira-se nas suas raízes humorísticas para conferir alguma leveza a um dos períodos mais negros na liberdade criativa e de expressão em Hollywood, transformando Trumbo numa fatia leve e informativa de uma das muitas e variadas eras da injustiça na indústria – um tema sempre atual, como podemos observar, num outro prisma, nas recentes movimentações contra a falta de diversidade na representação de papéis nas grandes produções de Hollywood. O argumento de John McNamara é também neste sentido arejado e relativamente capaz de condensar um conjunto de eventos complexos em duas horas de entretenimento acessível e informativo.

 

trumbo-3.png

 

Mas o maior problema de Trumbo surge justamente da batalha entre a informação que entretém e o retrato de uma Era verdadeiramente negra para o Cinema. Na verdade, a necessidade de entrecortar constantemente momentos de drama e seriedade com pedaços de comédia em forma de algodão doce é que se perde na tradução o tema muito, muito assustador que se pretende cobrir. E esta falta de alma e de predisposição a abraçar a seriedade sem medo de aborrecer o público não é ajudada pelo facto de o protagonista parecer repetidamente capaz de resolver todo e qualquer problema que lhe surja no caminho, qual super-herói do universo Marvel.

 

No elenco, o líder dos “Vingadores das palavras” é Bryan Cranston, que captura toda a nuance gentleman que envolvia Trumbo, bem como a sua inesgotável fonte de espirituosa produção de palavras – ditas e escritas. Do mesmo lado da barricada, vale ainda a pena destacar os complacentes companheiros de batalha, particularmente a figura compassiva e contrastante de Louis C.K., e ainda o gigantesco comic relief patrocinado por John Goodman como o irreverente Frank King, chefe de armas do estúdio de série B (ou Z?) King Brothers Productions.

 

trumbo-5.png

 

Do outro lado do campo de batalha jaz um dos maiores problemas de Trumbo: os vilões, pouco interessantes e dolorosamente unidimensionais. De facto, numa passagem tardia do filme, Trumbo sugere que não procuremos por heróis ou vilões no meio do que aconteceu, mas apenas vítimas. Não deixa de ser curioso que o próprio filme que relata tais ideais seja pouco capaz de os transferir para a película – ainda que encontre um certo grau de redenção para pelo menos um dos seus personagens mais moralmente questionáveis.

 

Resumindo e concluindo, o filme de Jay Roach é um exercício irregular de entretenimento que se quer relativamente informativo, mas não demasiadamente dramático. E é nesse equilíbrio desequilibrado que aniquila as suas próprias possibilidades de se tornar um filme excecional e importante: porque afinal de contas, apesar de representar uma luta ganha, Trumbo é um triunfo relativamente modesto – sólido e satisfatório, mas sem alma ou ambição que verdadeiramente merecia.

 

 

7.0/10

 

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Point-of-View Shot - The Revenant (2015)

por Catarina d´Oliveira, em 21.02.16

revenant.jpg

 

"I ain't afraid to die anymore. I'd done it already"

 

 

Um poema frenético cravado a frio na pele ensanguentada, The Revenant revisita o mito americano com a crueza que mais com ele condiz – venal, bruta e vingativa.

 

Numa expedição pelo desconhecido território americano, o lendário explorador Hugh Glass é brutalmente atacado por um urso e deixado como morto pelos seus companheiros de caça. Na luta pela sobrevivência, Glass resiste a um sofrimento inimaginável, bem como à traição de John Fitzgerald, um dos seus companheiros de expedição. Guiado pela sede de vingança e o amor da sua família, Glass terá de enfrentar um inverno rigoroso numa busca incessante pela sobrevivência e redenção.

 

the-revenant-image-tom-hardy-will-poulter.jpg

 

De Leonardo DiCaprio já se disse tudo o que virtualmente se poderia dizer de um ator absolutamente dedicado à sua arte. Depois de anos a fio a usar memes e engenhos humorísticos para gozar o facto de nunca ter levado um Óscar para casa – não obstante as vezes que o mereceu – será, certamente, este o ano que lhe quebra o enguiço. E apesar de ser uma performance profundamente instintiva, fisicamente complexa e matizada e extremamente impressionante, é difícil encaixá-la sequer no top 3 do cânone do ator, o que não deixa de parecer mais uma curiosa confirmação da célebre asserção de Katharine Hepburn sobre as estatuetas douradas: “os atores certos ganham sempre o Óscar, mas pelos papéis errados”.

 

Tanto ou mais surpreendente é Tom Hardy que aparece fiel à forma que lhe conhecemos – o que significa 100% carismático e 50% ininteligível no discurso. Fitzgerald não é um personagem propriamente complexo, aparecendo como um vilão ligeiramente cartoonizado, cujo momento mais humano surge quando descreve pormenorizadamente o que sentiu quando lhe arrancavam o escalpe a sangue frio. Fun!

 

the-revenant-trailer-screencaps-dicaprio-hardy34.p

 

Mas voltando às considerações gerais, o novo filme de Alejandro G. Iñárritu ambienta-se a um vértice fascinante da ainda breve história americana, mesmo antes de os caminhos serem trilhados, de os cowboys serem intitulados, de os homens armados de emblemas e fogos abrirem caminho pelo Oeste. É quase um cenário Bíblico, num mundo aparentemente sem lei onde a justiça se faz “olho por olho, dente por dente”. Aqui a única lei que impera é a da vingança em bruto, a única que importava naquele momento singular da história, aquele momento que se propaga numa saga de dor e determinação.

 

The Revenant é, assim e sem qualquer margem para fantasias, um violento western que só parece passado num cenário nevoso para expor ainda mais o sangue, suor e membros decepados. Iñárritu maravilha-se com a virgindade da terra, contraposta com a malevolência humana – a simples selvajaria inocente de tudo, desde as árvores sem fim, aos prados cobertos de branco, aos rios enraivecidos. Digamos que, em diversas formas e medidas, é, para o bem e para o mal (já lá iremos) o Gravity dos westerns - visceral e de tal forma eletrizante que transcende a própria narrativa.

 

O pano abre numa espécie de floresta alagada e húmida, de aspeto pouco convidativo, atolada de homens que trocaram qualquer noção de conforto pela possibilidade de fazer algum dinheiro extra no mercado das peles. Enquanto o gangue discute (pouco) alegremente assuntos mundanos, as setas começam a voar, e porque Iñárritu filma tudo com uma misteriosa obsessão pelo natural, é quase possível sentir a roupa pejada de lama, a água a consumir-nos os ossos, o sabor metálico do sangue a inundar-nos a boca. Toda a cena é filmada ao estilo de Birdman, o que significa que navegamos etereamente pelo caos, saltitando de personagem em personagem, enquanto estes rijos do Oeste tentam escapar vivos à fúria dos Índios que apenas procuram recuperar uma “princesa” desaparecida. E esta cena é apenas uma miniatura de tudo o resto.

 

the revenant.jpg

 

É uma espécie de paradoxo – aparentemente desnecessariamente cruel, mas é essa mesma dimensão ríspida que mantém a noção de que o Velho Oeste Selvagem era, de facto, desnecessariamente cruel. É certo que quase parece retirar um prazer retorcido da sua própria sanguinolência, num niilismo resvalado numa escuridão que ilustra sem espinhas que a selvajaria do Oeste selvagem não significava propósito, ou independência, ou liberdade. Aqui o selvagem era genuinamente bruto, desumanamente natural e inescapavelmente imperdoável.

 

The Revenant é visceralmente diferenciado de Birdman, mas também dos enredos entreligados dos anteriores filmes de Iñárritu (onde se contam, por exemplo, 21 Grams e Babel). Desta feita a história é extraordinariamente simples, inclusive a um ponto prejudicialmente detrimental. De facto, a ambição filosófica e moral é tão exacerbada que no momento em que chegamos à ansiada represália, depois de tanta dor, morte, planos da natureza e minutos inexplicavelmente queimados, é muito difícil não a sentir como uma relativa desilusão.

 

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Na verdade, o que fez Birdman funcionar tão bem foi o harmonioso casamento entre o virtuoso estilo do realizador e o estado caótico da psique das suas personagens. Todo o pandemónio miraculosamente organizado trabalhava em prol da história de um homem que, procurando reencontrar-se consigo mesmo, se perdia ainda mais. Em The Revenant, o estilo e a história não só não parecem estar na mesma página – parecem arrancados de livros diferentes. O investimento feito em encantar os nossos olhos através de cenas que são manifestamente indeléveis (Emmanuel Lubezki destaca-se uma vez mais como um dos mais talentosos e disruptivos diretores de fotografia dos nossos tempos), o mais recente filme de Iñárritu não consegue deixar de se sentir frustrantemente frio, incapaz de nos assoberbar o coração como nos revira as entranhas.

 

Feitas as contas, The Revenant parece mais uma experiência do que um filme propriamente completo e totalmente coerente. Todavia, esse tipo de cinema, esse raro tipo de cinema que nos transporta inesperada e inescapavelmente para um outro tempo e espaço, ao ponto de lhe cheirarmos os odores, de lhe sentirmos os chãos, de lhe sofremos as dores, é sempre bem-vindo.

 

 

7.5/10

 

 

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Point-of-View Shot - Joy (2015)

por Catarina d´Oliveira, em 03.02.16

joy.jpg

 

"Don't ever think that the world owes you anything, because it doesn't. The world doesn't owe you a thing"

 

Era uma vez, uma bela e pura menina de cabelos dourados, filha de um comerciante de sucesso, que sonhava com uma vida feliz e preenchida, num futuro que desejava não muito distante. Um dia, um príncipe encantado chegou, arrebatou-a e salvou-a de uma existência infeliz e abusiva, e viveram felizes para sempre.

 

Esta é a história de Cinderella, e esta poderia muito bem ser a história de Joy. Contudo, em contos que não são de fadas, mas de gentes, não há príncipes, nem carruagens mágicas, nem feitiços até à meia-noite. Há independência, dedicação sem horários e... uma esfregona milagrosa.

 

Inspirado nas histórias verdadeiras de mulheres audazes’: assim abre portas o “Joy” de David O. Russell, que poderia simplesmente ter pedido emprestada a citação que introduziu o irmão mais velho, “American Hustle”: ‘alguns destes factos aconteceram realmente’.

 

22C-1 (A only).Sub.02CC_R3.jpg

  

O nono filme no currículo do realizador nova iorquino é dissolutamente baseado na história de Joy Mangano, uma mãe solteira de Long Island que, no início dos anos 90, revolucionou a sua vida de simplicidade ao desenvolver uma invenção miraculosa que facilitaria a vida doméstica a muito boa gente e que a tornaria numa superestrela das (agora olvidadas) televendas. 

 

Numa primeira instância, e apesar de sofrer de diversas maleitas – já lá iremos - “Joy” é deliciosamente refrescante: Hollywood não se coíbe de explorar insistentemente a galinha de ovos de ouro que é o ethos nacional do Sonho Americano, mas são raras as vezes em que esse sonho se transporta de salto alto e se fortalece à base de estrogénio palpitante. Contemporaneamente feminino (sem ser pejorativamente feminista), “Joy” é uma ode à mulher moderna.

 

E já que falamos em mulher moderna... Entre bochechas redondas e olhar juvenil, é difícil engajar a suspensão de descrença ao ver Jennifer Lawrence passar por uma trintona com dois filhos, mas se “Joy” teve algum êxito indiscutível foi nesta sua inesperada aposta. No seu papel mais carnudo desde “Despojos de Inverno” – o glorioso e humilde indie que a lançou na rota do estrelato em meados de 2010, e que lhe valeu, inclusive, a primeira indicação a Óscar – Lawrence marca uma posição forte e credível, construindo uma personagem relacionável e estratificada que serve de derradeira boia de salvação entre a ciclónica bagunça tonal de O. Russell. É ela que consegue, ainda que marginalmente, colocar o filme com os pés na terra. E sempre que surge uma oportunidade para brilhar, Lawrence não desaponta, seja na dureza com que enfrenta a desonestidade de oblíquos homens de negócios, seja no retrato matizado que faz de uma mulher simples mas de grandes ideias.

 

joy-4-xlarge.jpg

 

À exceção de um competente e sóbrio Bradley Cooper, o elenco secundário (composto, entre outros, por Robert De Niro, Isabella Rosselini e Virginia Madsen) pouca margem tem para dar ares de sua graça, muito culpa do argumento, muito mecânico e pouco emocional, que torna a família de Joy particularmente subdesenvolvida, irritativa e caricaturada, com o objetivo simultâneo mas pouco conseguido de arrancar gargalhadas e estabelecer contraste com a honrada protagonista.

 

Esta é, na verdade, uma deformidade (infelizmente) atual de O. Russell, que parece cada vez mais obstinado em incluir “caricaturas do seu tempo” em cada uma das suas produções, apenas porque o pode fazer. De facto, a “família tóxica” sempre fez parte do núcleo dos seus temas recorrentes, mas enquanto noutros momentos existiu uma forte ligação entre a opressão e a rejeição e o amor e a necessidade, explorando-se depois o impacto e significado dessa relação abusiva para o protagonista, “Joy” não vai além do subdesenvolvimento e da inconsequência de uma família disfuncional apenas porque é disfuncional, nem sequer explorando os verdadeiros efeitos que essa realidade abusiva teria na protagonista ou sequer abordando a natureza controversa da dinâmica dessas relações negativas – matéria em que O. Russell já foi, inclusive, especialista (veja-se a destreza com que o fez, por exemplo, em “The Fighter”, 2010).

 

Rapidamente, o dispositivo torna-se então progressivamente mais fatigado e, naturalmente, atrasa todo o restante processo narrativo e emocional. Assim, a primeira parcela da fita – mais focada no ambiente familiar e a consequente rutura do mesmo – é manifestamente mais morosa e menos dinâmica.

 

joy-2015.jpg

 

É a partir do segundo ato que “Joy” brilha – talvez no momento em que o realizador deixa de se encantar por cartoons e volta a interessar-se pela história da mulher que o inspirou em primeiro lugar – tornando-se verdadeiramente envolvente e eficaz, deixando-se submergir nos sucos da fascinante envolvência empreendedora do enredo.

 

Consequentemente, o filme de O. Russell não ressoa propriamente como uma biografia memorável, mas mais como uma leve e fofa fatia de espírito empreendedor, contaminada por um ritmo inconstante, uma direção incerta e um grupo de personagens secundários desconfortável.

 

Há uma película notável algures, mas poluída por uma contaminação que não lhe pertence. Afinal, talvez lhe faltasse uma ou duas passagens pela tal esfregona milagrosa...

 

 

7.0/10

 

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