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"I ain't afraid to die anymore. I'd done it already"
Um poema frenético cravado a frio na pele ensanguentada, The Revenant revisita o mito americano com a crueza que mais com ele condiz – venal, bruta e vingativa.
Numa expedição pelo desconhecido território americano, o lendário explorador Hugh Glass é brutalmente atacado por um urso e deixado como morto pelos seus companheiros de caça. Na luta pela sobrevivência, Glass resiste a um sofrimento inimaginável, bem como à traição de John Fitzgerald, um dos seus companheiros de expedição. Guiado pela sede de vingança e o amor da sua família, Glass terá de enfrentar um inverno rigoroso numa busca incessante pela sobrevivência e redenção.
De Leonardo DiCaprio já se disse tudo o que virtualmente se poderia dizer de um ator absolutamente dedicado à sua arte. Depois de anos a fio a usar memes e engenhos humorísticos para gozar o facto de nunca ter levado um Óscar para casa – não obstante as vezes que o mereceu – será, certamente, este o ano que lhe quebra o enguiço. E apesar de ser uma performance profundamente instintiva, fisicamente complexa e matizada e extremamente impressionante, é difícil encaixá-la sequer no top 3 do cânone do ator, o que não deixa de parecer mais uma curiosa confirmação da célebre asserção de Katharine Hepburn sobre as estatuetas douradas: “os atores certos ganham sempre o Óscar, mas pelos papéis errados”.
Tanto ou mais surpreendente é Tom Hardy que aparece fiel à forma que lhe conhecemos – o que significa 100% carismático e 50% ininteligível no discurso. Fitzgerald não é um personagem propriamente complexo, aparecendo como um vilão ligeiramente cartoonizado, cujo momento mais humano surge quando descreve pormenorizadamente o que sentiu quando lhe arrancavam o escalpe a sangue frio. Fun!
Mas voltando às considerações gerais, o novo filme de Alejandro G. Iñárritu ambienta-se a um vértice fascinante da ainda breve história americana, mesmo antes de os caminhos serem trilhados, de os cowboys serem intitulados, de os homens armados de emblemas e fogos abrirem caminho pelo Oeste. É quase um cenário Bíblico, num mundo aparentemente sem lei onde a justiça se faz “olho por olho, dente por dente”. Aqui a única lei que impera é a da vingança em bruto, a única que importava naquele momento singular da história, aquele momento que se propaga numa saga de dor e determinação.
The Revenant é, assim e sem qualquer margem para fantasias, um violento western que só parece passado num cenário nevoso para expor ainda mais o sangue, suor e membros decepados. Iñárritu maravilha-se com a virgindade da terra, contraposta com a malevolência humana – a simples selvajaria inocente de tudo, desde as árvores sem fim, aos prados cobertos de branco, aos rios enraivecidos. Digamos que, em diversas formas e medidas, é, para o bem e para o mal (já lá iremos) o Gravity dos westerns - visceral e de tal forma eletrizante que transcende a própria narrativa.
O pano abre numa espécie de floresta alagada e húmida, de aspeto pouco convidativo, atolada de homens que trocaram qualquer noção de conforto pela possibilidade de fazer algum dinheiro extra no mercado das peles. Enquanto o gangue discute (pouco) alegremente assuntos mundanos, as setas começam a voar, e porque Iñárritu filma tudo com uma misteriosa obsessão pelo natural, é quase possível sentir a roupa pejada de lama, a água a consumir-nos os ossos, o sabor metálico do sangue a inundar-nos a boca. Toda a cena é filmada ao estilo de Birdman, o que significa que navegamos etereamente pelo caos, saltitando de personagem em personagem, enquanto estes rijos do Oeste tentam escapar vivos à fúria dos Índios que apenas procuram recuperar uma “princesa” desaparecida. E esta cena é apenas uma miniatura de tudo o resto.
É uma espécie de paradoxo – aparentemente desnecessariamente cruel, mas é essa mesma dimensão ríspida que mantém a noção de que o Velho Oeste Selvagem era, de facto, desnecessariamente cruel. É certo que quase parece retirar um prazer retorcido da sua própria sanguinolência, num niilismo resvalado numa escuridão que ilustra sem espinhas que a selvajaria do Oeste selvagem não significava propósito, ou independência, ou liberdade. Aqui o selvagem era genuinamente bruto, desumanamente natural e inescapavelmente imperdoável.
The Revenant é visceralmente diferenciado de Birdman, mas também dos enredos entreligados dos anteriores filmes de Iñárritu (onde se contam, por exemplo, 21 Grams e Babel). Desta feita a história é extraordinariamente simples, inclusive a um ponto prejudicialmente detrimental. De facto, a ambição filosófica e moral é tão exacerbada que no momento em que chegamos à ansiada represália, depois de tanta dor, morte, planos da natureza e minutos inexplicavelmente queimados, é muito difícil não a sentir como uma relativa desilusão.
Na verdade, o que fez Birdman funcionar tão bem foi o harmonioso casamento entre o virtuoso estilo do realizador e o estado caótico da psique das suas personagens. Todo o pandemónio miraculosamente organizado trabalhava em prol da história de um homem que, procurando reencontrar-se consigo mesmo, se perdia ainda mais. Em The Revenant, o estilo e a história não só não parecem estar na mesma página – parecem arrancados de livros diferentes. O investimento feito em encantar os nossos olhos através de cenas que são manifestamente indeléveis (Emmanuel Lubezki destaca-se uma vez mais como um dos mais talentosos e disruptivos diretores de fotografia dos nossos tempos), o mais recente filme de Iñárritu não consegue deixar de se sentir frustrantemente frio, incapaz de nos assoberbar o coração como nos revira as entranhas.
Feitas as contas, The Revenant parece mais uma experiência do que um filme propriamente completo e totalmente coerente. Todavia, esse tipo de cinema, esse raro tipo de cinema que nos transporta inesperada e inescapavelmente para um outro tempo e espaço, ao ponto de lhe cheirarmos os odores, de lhe sentirmos os chãos, de lhe sofremos as dores, é sempre bem-vindo.
7.5/10