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"It will end, soon. But before it does, a lot more people have to die"
A história volta a ser violenta no regresso de Brad Pitt ao terreno lamacento e mortífero da Segunda Guerra Mundial.
O filme realizado David Ayer é uma janela aberta para uma das mais interessantes partes do inolvidável conflito: o seu final. Os Nazis sabem-no perto, os Aliados sentem-no, mas Hitler ainda não o admitiu e de alguma forma os peões continuam a mover-se num terreno alemão profundamente devastado por mais de cinco anos de luta. A carnificina e o caos que por aqui passaram são inimagináveis, mas cruamente reais, como descobre da forma mais difícil o soldado novato Norman Ellison que é destacado para um dos poucos tanques norte-americanos que restam em combate.
No momento em que o Sargento Don “Wardaddy” Coliider lhe põe os olhos em cima, sabe que este será mais uma morte certa para as forças americanas sem a devida instrução. Mas tal como prometeu ao resto da sua equipa – o cru mecânico Grady “Coon-Ass” Travis, o espirituoso condutor Trini “Gordo” Garcia e o artilheiro Boyd “Bible” Swan – fará tudo para os levar até ao fim do conflito vivos. Todavia, e à medida que se entranham mais e mais no arrasado território inimigo povoado por alemães cada vez mais desesperados e dispostos a tudo, Wardaddy terá a sua tarefa muito dificultada.
Profundamente ambicioso, “Fury” é um exercício fascinante e provocador, ainda que defeituoso em importantes frentes. Penoso, brutal e entusiasmante, é a maior aproximação que encontrará à experiência de passar uns “aprazíveis” dias num claustrofóbico e mal equipado tanque americano no final Guerra – só resta agradecer aos céus que ainda seja impossível uma experiência cinematográfica com cheiro… mas conseguimos imaginar!
Além de recordar a fraternidade entre os irmãos de armas à semelhança das películas de guerra dos anos 60 e 70 (como “The Dirty Dozen”), o filme de Ayer também reflete a sombra negra mais reconhecível nos clássicos do pós-Vietname como “Platoon” e “Full Metal Jacket” – mais concretamente, os efeitos inapagáveis da guerra na psique e alma humana.
Mas o que distancia “Fury” dos demais familiares cinematográficos do género é a sua entrega honesta à fealdade de uma guerra feia. Ayer mergulha – e por extensão, mergulha-nos – na imundice de poças de sangue, nos corpos apodrecidos empurrados pelas escavadoras, nos cadáveres dissolvidos na lama. A beleza surge em pormenores fugidios, como um cavalo branco simbólico ou uma garota loira de olhos tristes, mas a qualquer minuto, Ayer prepara-se para nos castigar por baixarmos a guarda.
As batalhas são algo como nunca vimos antes, tática e logisticamente brilhantes, com a devastação bem patente à custa de explosões de cabeças e membros decepados. Apesar de ter sido orquestrada de forma entusiasmante, a conclusão é uma desilusão do ponto de vista dramático – um final “à Hollywood”, que não condiz propriamente bem com a precisão elétrica e moral ambígua da história até então.
Brad Pitt, Shia LaBeouf e Logan Lerman ficarão certamente na memória pelas carismáticas e afetantes interpretações, mas infelizmente virtualmente todos os personagens são estereótipos: o chefe duro mas de bom coração, o latino desenvolto, o bad boy abrutalhado, o miúdo. A superficialidade da sua abordagem nunca é ultrapassada, com a exceção do jovem Norman, cujos olhos são a nossa porta de entrada para o Inferno instalado. Nestes homens não vemos ou ouvimos a referência à saudade de uma vida passada, apenas o hoje e o som metálico do interior sufocante de uma máquina de guerra que aprenderam a chamar de casa.
Com cirúrgica atenção ao detalhe e autenticidade aplicadas às sequências de batalha ao estilo old-school, oferece uma brutalidade e crueza refrescantes, sem cair no habitual jingoísmo do género, e alicerçando-se em verdades absolutas e sentimentos diretos e simples. É verdade que não existe uma história verídica à qual equiparar e ficcionalização de Ayer, mas esta parece leal, honesta, franca.
É disso que trata “Fury”. Não versa sobre uma geração orgulhosa dos seus feitos, mas da pura definição de pesadelo que representa. E da lama, da sujidade, do sangue, da escuridão. Do som das canções germânicas e dos impropérios americanos. Do barulho dos tanques, das granadas e das metralhadoras. E da névoa da guerra: a neblina das bombas de fumo, mas sobretudo o indistinto nevoeiro entre o poder e a vulnerabilidade, a humanidade e a tirania, a necessidade e a crueldade, e entre o homem e o animal.
7.5/10
"The beginning of everything"
Numa manobra sem precedentes em Hollywood, um orçamento de 130 milhões de dólares não se destina a um Capitão América ou um Homem de Ferro. O escopo e a destruição iminente são denominadores comuns, mas desta feita, o herói é bíblico.
Depois de um início de carreira experimental com “Pi”, “Requiem for a Dream” e “The Fountain”, Darren Aronofsky tentou combinar, nas suas obras seguintes, as expressões estética, temática e artística desenvolvidas em embrulhos mais apelativos ao gosto público, conseguindo-o em larga medida, primeiro com “The Wrestler” e posteriormente – e com maior sucesso – com “Black Swan”.
Em “Noah” a fórmula atinge proporções nunca antes tentadas, e pode mesmo dizer-se que a sua imensurável ambição é, simultaneamente, o seu dom e a sua maldição.
Mas para efeitos de esclarecimento e assimilação, vale a pena começar pelo início – não de todas as coisas, mas do enquadramento da história. Se por um lado todos conhecemos, com maior ou menor detalhe, a narrativa de Noah, vale a pena recordar que esta constitui uma secção tumultuosa mas bastante breve do Génesis. Além deste, optou ainda por se inspirar em passagens do Livro de Enoque, particularmente para introduzir a mitologia dos Guardiões – cuja materialização física numa espécie de Transformers pré-históricos não terá, certamente, sido a mais feliz. Mas serve esta elucidação para colocar à luz a necessidade imperativa de Aronofsky de expandir o universo, de forma a conseguir criar um épico coeso e ao mesmo tempo fiel à sua visão. É assim importante que o espectador parta para “Noah” ciente dos embelezamentos e liberdades que tiveram de ser tomadas, e preparado até para uma boa dose de suspensão de descrença.
Avancemos agora para o produto final.
Para todos os efeitos, “Noah” é um filme regido pelas grandes ideias – da fé, da obediência divina, do amor humano, da corrupção da inocência, a dualidade do Homem e as suas inerentes falhas – e pelas ambições do realizador. Por isso, é também uma experiência relativamente esquizofrénica – por um lado, uma alegoria fantástica e uma parábola bíblica séria e respeitosa; por outro, um espetáculo escabroso de proporções desmedidas que parece ter cedido à gula cinematográfica de um orçamento de nove dígitos.
Toda a casca comercial serve para cobrir uma dissertação que não é básica, mas nuclear: a dualidade humana e o equilíbrio contraditório da necessidade e do desejo, da natureza e do divino, da inocência e do livre arbítrio. Como aconteceu em “A Última Tentação De Cristo” de Martin Scorsese, aqui Aronofsky está mais interessado nas recalcadas questões de misericórdia, justiça e inocência do que propriamente num retrato copista dos eventos escritos. O tratamento da história não é literal mas mais mitológico, não só abrindo a porta à possibilidade de interpretação, como ao paralelismo que efetua com o mundo atual. Aronofsky pega numa história que todos pensamos conhecer, e apresenta-a de uma forma intrigante.
No entanto, e quando finalmente os créditos rolam no ecrã, a sensação que fica é que algo está inacabado e que o próprio Aronofsky ainda se convulsa sobre as complexas questões e enigmas morais que criou. Quando o filme termina, ele ainda procura, como talvez continue a procurar sempre.
“Noah” era um projeto de longa paixão de um realizador cujos dons artísticos e visionários nunca estiveram em questão. O problema, nesta transposição particular, é que parecem existir três ou quatro filmes diferentes a competir pelo domínio da narrativa.
Mas apesar de esmagador, inundado no fascínio e à deriva na loucura, “Noah” é também desafiante e arrisca de uma forma que raros filmes com este orçamento ousam sequer considerar. Nos seus momentos de glória – que são alguns – é sublime.
E isso, não sendo tudo, é definitivamente alguma coisa.
6.5/10