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"So which story do you prefer?"
É raro, mas acontece. De vez em quando, o realizador certo cruza-se com o projeto certo, no momento certo. E assim, por uma espécie de magia que é difícil compreender ou conjurar, coisas que parecem à primeira vista dissonantes, organizam-se numa harmonia divina. Nesse momento compreendemos o quão cheia de vida e maravilhosa uma experiência cinematográfica pode ser.
Publicado originalmente em 2001, o romance de Yann Martel que dá nome ao filme de Ang Lee foi rapidamente etiquetado de “impossível de filmar”. Mas quem conhece minimamente o realizador taiwanês sabe que este só se envolve em projetos que o assustam profundamente. A incursão audaz de Lee transforma uma premissa inconcebível em linguagem cinematográfica movida a poesia visual.
Mas vamos à história.
A ação inicia-se em Pondicherry, uma antiga colónia francesa na Índia, algures nos anos 70. É lá que encontramos pela primeira vez o jovem Piscine, que vive com a família que mantém um bem-sucedido zoológico pejado de animais exóticos.
Pi – alcunha que Piscine se apressa a adotar quando os amigos o atormentam com a maldade fonética que permite ao seu nome ser comparado com “pissing” – absorve tudo o que pode sobre as religiões do mundo, recolhendo em cada uma pedaços de fé como um garoto de rua coleciona caricas. O seu desejo é não só conhecer profundamente a Fé humana como um todo, mas encontrar-se a si mesmo nessa jornada.
Depois de um encontro marcante com Richard Parker – o novo tigre do zoo -, o que Pi não esperava era que todas as suas asserções e certezas entrassem em confronto quando, depois de a família vender o Zoológico e partir em busca de um futuro melhor no Canadá, uma violenta tempestade o dispa de todos os afetos, apoios e comodidades, deixando-o perdido, à deriva, num bote salva-vidas acompanhado de um peculiar grupo de animais.
A ciência, fé, tecnologia e transcendência aparecem, muitas vezes, em pé de guerra e polos opostos, mas no filme de Lee, içam a bandeira branca e dão as mãos pacificamente. A tecnologia pode ter alma, uma vez nas mãos de alguém capaz de contar uma história onde conseguimos identificar o reflexo humano.
“Life of Pi” surge como o filme mais impressionante a nível visual desde “The Tree of Life” (2011), e o melhor uso de 3D desde “Avatar” (2009) – na verdade, Ang Lee faz pelo Pacífico o que James Cameron fez por Pandora, oferecendo espetáculo e maravilhas em todos os sentidos dos termos, como se fossem diretamente arrancados de um sonho.
O caso particular da criação de Richard Parker é especialmente impressionante: a crença de que estamos perante uma criação da natureza e não de uma equipa de peritos técnicos é desfeita ao navegarmos pelo trivia relacionado com o filme: mais de 85% dos planos do tigre são imagens geradas por computador, sendo utilizado um animal verdadeiro em apenas 23 planos (um dos exemplos ocorre quando Richard Parker nada na água, tentando erguer-se novamente no barco sem a ajuda de Pi).
Com efeitos visuais de qualidade e dinâmica incomparável, a fotografia em 3D de Claudio Miranda (que merecidamente lhe valeu o Oscar da Academia) é de uma força magnética única, artisticamente útil ao invés de mecanizada para nos atirar com coisas enquanto sorrateiramente nos assalta a carteira.
A boa notícia, que parte de um dos maiores receios de um espectador exterior perante a espetacularidade visual do filme de Lee, é que a magia não existe por si mesma, mas para atuar de acordo com a evolução da história e dos seus protagonistas, sendo um peão tão (e não mais) importante na elação intelectual e espiritual final.
O argumento sensível e lírico (ainda que não totalmente sólido) de David Magee (“Finding Neverland”) convém habilmente o sentimento da fábula de crescimento ao estilo simbólico de Robinson Crusoe.
Na sua primeira incursão no grande ecrã, Suraj Sharma oferece uma performance louvável, tendo em conta a profundidade dos temas do material em causa e especialmente o facto de ter restringido os seus relacionamentos no set com animais, Deus e o ecrã verde.
A relação entre Pi e Richard Parker é um dos pontos de destaque de toda a narrativa, expressando maravilhosamente a luta pela manutenção da esperança sem qualquer deixa religiosa para se orientar.
Enquanto o livro pode ter sido mais eficaz no retrato dos desafios espirituais, mentais e físicos de Pi, o filme apresenta algumas limitações na representação, algumas decorrentes dos próprios constrangimentos do meio. As sequências da entrevista são profundamente lúcidas, mas não deixam de ser narrativamente sufocantes, quase incongruentes tendo em conta a frescura e potencialidade épica da porção da efetiva jornada de Pi.
Apesar de o estatuto de obra de arte lhe falhar por aquilo que se sente como ‘um bocadinho assim’, “Life of Pi” consegue ser um pequeno milagre, tanto como adaptação de um material difícil, como de uma visão unificada de elementos artísticos, científicos e espirituais sofisticados, mantendo a intenção ambígua do material de Martel.
O desenlace é inesperadamente revigorante e fascinante, na medida em que determinará, em todos os casos, a opinião particular de cada espectador sobre o filme. Subitamente, o tapete é puxado debaixo dos nossos pés, e uma nova realidade compete pela nossa crença.
Não há uma resposta certa, apenas uma escolha.
No conjunto, é uma alegoria religiosa e espiritual provocadora que muito tem a dizer sobre a fé, os incomensuráveis desafios da vida, o crescimento pessoal e as próprias liberdades e limitações do simples ato de contar uma história.
No fechar do pano, fica a certeza de que o Cinema nunca poderá morrer enquanto continuar disposto a reconhecer a importância paralela entre reconhecer e capturar a realidade e deixar a fantasia fluir para criar coisas que nunca julgámos possíveis. São filmes como “Life of Pi” que provam que, contrariamente às previsões funestas relativas ao meio, o Cinema caminha para a reinvenção.
8.0/10