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Dos invernos em que nos perdemos em playlists cirurgicamente selecionadas a gosto aos verões em que nos deixamos levar pelos cartazes dos festivais, a Música habita o nosso quotidiano combatendo o silêncio ensurdecedor e promovendo o cultivo artístico, político, emocional, espiritual e, no fundo, da aptidão de viver uma existência mais completa.
Mas quando a primeira arte se cruza com a sétima, mergulhamos um pouco mais fundo no contexto e na realidade daqueles que também ajudaram a edificar o que vemos, o que ouvimos, e o que somos. E passamos a ser mais.
DON’T LOOK BACK (1967), de D.A. Pennebaker
É uma das poucas lendas ainda vivas das áureas décadas musicais de 60 e 70, mas não é por isso que a esquiva identidade de Bob Dylan, o eterno rebelde anarquista do folk/rock na linha da memória, se torna mais acessível ou menos simbólica. Filmado durante a tour britânica de 1965, o documentário de Pennebaker é, sobretudo, de natureza observacional - pioneira na altura - observando sem intervenção e de forma simples e espontânea a explosão de um ícone. Acompanhando Dylan na criação da mercurial rock star moderna – genial na tradução do engenho mas combativa e corrosiva fora de palco – Pennebaker construiu um dos melhores e mais influentes documentários musicais da história.
FRANK (2014), de Lenny Abrahamson
Coescrito por Jon Ronson (ex-membro dos Oh Blimey Big Band) e inequivocamente inspirado na criação de Chris Sievey (uma personagem com uma enorme cabeça de papel chamada Frank Sidebottom), “Frank” é uma ficção por conta própria que nos leva numa viagem à boleia dos Soronprfbs, uma banda excêntrica encabeçada pelo enigmático personagem titular. Começando como uma extravagante e não raras vezes divertida excursão pelo processo criativo musical, é uma deliciosa dissonância, provocadora e sensível que explora a verdadeira importância do sucesso comercial nos dias de hoje em oposição à necessidade de conceção de algo verdadeiramente único.
BUENA VISTA SOCIAL CLUB (1999), de Wim Wenders
Cores gastas, estética de hand-held, piadas da banda intercaladas com momentos de performance cheios de alma. São clichés que nos habituamos a amar nos meandros da história do documentário musical contemporâneo, mas que um dia foram frescos nos filmes que os criaram. Este foi um deles. Um tributo alegre e irresistível a um histórico e singular grupo de artistas puros e humildes onde a música é tão importante como as vidas e a cultura que existe por trás de si.
CONTROL (2007), de Anton Corbjin
Antes do filme existiram as fotos que uniram o destino de Anton Corbjin à veia post-punk dos Joy Division, mas foi quando o fotógrafo decidiu passar à imagem em movimento que este casamento de paixões e intensões chegou ao auge do seu artifício artístico. Num preto e branco metálico, Corbjin explora a vida do vocalista Ian Curtis desde 1973 até à sua morte, em 1980, no pico da sua primeira tour norte-americana. A ficção de “Control” é tão pura que chega a roçar o documental quando mergulha de cabeça numa era esquecida onde, antes de computadores, toques polifónicos e redes sociais, era a música que ajudava a alimentar a imaginação.
WOODSTOCK (1970), de Michael Wadleigh
As tentativas de replicação foram (e são) imensuráveis mas já é comummente aceite que nunca existirá outro festival de música como o Woodstock do longínquo verão de 1969. Há, no entanto, muito boa gente que defenda que o evento não teria adquirido tanta relevância social, histórica ou cultural se não fosse pelo filme homónimo lançado no ano seguinte, que viria, inclusive, a ganhar o Óscar na categoria de Melhor Documentário. Mais de 45 anos depois, a epítome da contracultura mantém a sua mística e perante a impossibilidade de viajar no tempo e regressar ao Éden musical que desceu à terra na quinta de Max B. Yasgur, assistir ao filme de Michael Wadleigh é a experiência mais próxima do fenómeno de paz, amor caótico e música que juntou Santana, The Who, Jimi Hendrix e muitos outros.
THIS IS SPINAL TAP (1984), de Rob Reiner
Se o virem uma vez, é provável que o voltem a ver vezes sem conta. É um dos suprassumos da comédia contemporânea e da sátira musical e geralmente considerado, sem grandes cerimónias, como um dos melhores spoofs de sempre. A maior parte do diálogo surgiu de improvisação, mas não é por isso que o clássico de Rob Reiner é menos referenciado e citado nos circuitos de culto. Seguindo uma banda fictícia britânica numa tour pelos EUA, este “mockumentary” é extravagantemente divertido e surpreendentemente verosímil – muitas bandas dirão que poderá versar sobre a sua história.
THE DOORS (1991), de Oliver Stone
Foram príncipes da contracultura dos anos 60 e uma das bandas mais controversas e influentes de sempre com um vocalista carismático e dramático que inspiraria gerações – razões de sobra para levar o também rebelde Oliver Stone a inspirar-se na sua história para criar uma ficção que passou diretamente para o top de favoritos de muitos entusiastas da música. Não é o título mais forte ou unânime da lista, mas é uma carta de amor à cena do rock psicadélico dos anos 60 em geral, e um sentido tributo à figura de culto de Jim Morrison em particular.
A HARD DAY’S NIGHT (1964), de Richard Lester
Assumo que é impossível que algum dos dois ou três leitores deste blog não conheça os Beatles, mas é relativamente compreensível que seja difícil de conceber a verdadeira dimensão e relevância do grupo que ajudou a cunhar o termo “boy band”. Não falo tanto da influência artística e cultural, porque essa é irreproduzível em magros dois parágrafos, mas da adulação que moveu dezenas de milhões de seguidores por todo o mundo. Numa paragem quintessencial do Cinema com objetos musicais, não só conhecemos as distintas personalidades dos quatro membros como assistimos à criação da fundação de uma mitologia que se ergue até à atualidade. É um sorriso na cara do início ao fim enquanto Paul, John, George e Ringo incendeiam a sua histórica e alegre revolução musical.
Artigo originalmente publicado na Vogue.pt
"Stale beer. Fat fucked, smoked out. Cowpoked. Sequined mountain ladies. I love your wall. Put your arms around me. Fiddly digits, itchy britches. I love you all."
Pode não saber muito sobre “Frank”, mas provavelmente já ouviu dizer que é protagonizado por Michael Fassbender, envergando uma enorme cabeça postiça… portanto mais vale começarmos por aí.
Apesar de ser o ator irlandês o grande responsável pelo arrastamento de público que o filme aproveitará, a comédia dramática de Lenny Abrahamson não é tanto sobre esta sua fantástica performance (num laivo de inspiração de casting ao nível do de Scarlett Johansson em “Her"), mas sobre os ideais criativos que o seu personagem representa.
Ainda que tenha sido coescrito por Jon Ronson (ex-membro dos Oh Blimey Big Band) e de ser inspirado na criação de Chris Sievey (uma personagem com uma enorme cabeça de papel chamada Frank Sidebottom), “Frank” é uma ficção por conta própria que nos leva numa viagem à boleia dos Soronprfbs, uma banda excêntrica encabeçada pelo enigmático personagem titular, à qual se junta Jon, um entusiástico mas inocente teclista cujo desejo de fama e reconhecimento excede largamente as suas capacidades artísticas.
Além de capturar na perfeição os momentos de tédio, ansiedade e explosão criativa inerentes à participação numa banda, o filme de Abrahamson é absolutamente desconcertante no tom, assumindo uma abordagem surpreendentemente negra e taciturna no storytelling. Começando como uma extravagante e não raras vezes divertida excursão pelo processo criativo, o filme evolui para uma exploração das torturadas psiques dos seus protagonistas. O facto de mergulhar as suas resoluções convencionais e estrutura familiar na estranheza e peculiaridade dos seus personagens podia ser um motivo crítico, mas a verdade é que “Frank” está no seu melhor quando utiliza as potencialidades deste sistema para parodias as dificuldades da criação musical.
Pelo caminho, percorremos ainda críticas e comentários ao pano de fundo da indústria musical, proliferação e crescente importância da presença nos media sociais e a dinâmica de grupo.
Adicionalmente, e não obstante o último ato ameaçar prejudicar a mística envolvente (assumindo, inclusive uma posição algo cliché que chegou a parodiar nos primeiros dois atos) e o facto de um nevoeiro permanente pairar sobre as suas intenções – é difícil saber se é mais uma sátira crítica à indústria musical ou a celebração de um génio – “Frank” é uma deliciosa dissonância, provocadora e sensível que explora a verdadeira importância do sucesso comercial em oposição à conceção de algo verdadeiramente único.
Umas vezes compensa, outras não - é esta a verdadeira beleza e dor tortuosa da criação artística.
8.0/10