Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"The beginning of everything"
Numa manobra sem precedentes em Hollywood, um orçamento de 130 milhões de dólares não se destina a um Capitão América ou um Homem de Ferro. O escopo e a destruição iminente são denominadores comuns, mas desta feita, o herói é bíblico.
Depois de um início de carreira experimental com “Pi”, “Requiem for a Dream” e “The Fountain”, Darren Aronofsky tentou combinar, nas suas obras seguintes, as expressões estética, temática e artística desenvolvidas em embrulhos mais apelativos ao gosto público, conseguindo-o em larga medida, primeiro com “The Wrestler” e posteriormente – e com maior sucesso – com “Black Swan”.
Em “Noah” a fórmula atinge proporções nunca antes tentadas, e pode mesmo dizer-se que a sua imensurável ambição é, simultaneamente, o seu dom e a sua maldição.
Mas para efeitos de esclarecimento e assimilação, vale a pena começar pelo início – não de todas as coisas, mas do enquadramento da história. Se por um lado todos conhecemos, com maior ou menor detalhe, a narrativa de Noah, vale a pena recordar que esta constitui uma secção tumultuosa mas bastante breve do Génesis. Além deste, optou ainda por se inspirar em passagens do Livro de Enoque, particularmente para introduzir a mitologia dos Guardiões – cuja materialização física numa espécie de Transformers pré-históricos não terá, certamente, sido a mais feliz. Mas serve esta elucidação para colocar à luz a necessidade imperativa de Aronofsky de expandir o universo, de forma a conseguir criar um épico coeso e ao mesmo tempo fiel à sua visão. É assim importante que o espectador parta para “Noah” ciente dos embelezamentos e liberdades que tiveram de ser tomadas, e preparado até para uma boa dose de suspensão de descrença.
Avancemos agora para o produto final.
Para todos os efeitos, “Noah” é um filme regido pelas grandes ideias – da fé, da obediência divina, do amor humano, da corrupção da inocência, a dualidade do Homem e as suas inerentes falhas – e pelas ambições do realizador. Por isso, é também uma experiência relativamente esquizofrénica – por um lado, uma alegoria fantástica e uma parábola bíblica séria e respeitosa; por outro, um espetáculo escabroso de proporções desmedidas que parece ter cedido à gula cinematográfica de um orçamento de nove dígitos.
Toda a casca comercial serve para cobrir uma dissertação que não é básica, mas nuclear: a dualidade humana e o equilíbrio contraditório da necessidade e do desejo, da natureza e do divino, da inocência e do livre arbítrio. Como aconteceu em “A Última Tentação De Cristo” de Martin Scorsese, aqui Aronofsky está mais interessado nas recalcadas questões de misericórdia, justiça e inocência do que propriamente num retrato copista dos eventos escritos. O tratamento da história não é literal mas mais mitológico, não só abrindo a porta à possibilidade de interpretação, como ao paralelismo que efetua com o mundo atual. Aronofsky pega numa história que todos pensamos conhecer, e apresenta-a de uma forma intrigante.
No entanto, e quando finalmente os créditos rolam no ecrã, a sensação que fica é que algo está inacabado e que o próprio Aronofsky ainda se convulsa sobre as complexas questões e enigmas morais que criou. Quando o filme termina, ele ainda procura, como talvez continue a procurar sempre.
“Noah” era um projeto de longa paixão de um realizador cujos dons artísticos e visionários nunca estiveram em questão. O problema, nesta transposição particular, é que parecem existir três ou quatro filmes diferentes a competir pelo domínio da narrativa.
Mas apesar de esmagador, inundado no fascínio e à deriva na loucura, “Noah” é também desafiante e arrisca de uma forma que raros filmes com este orçamento ousam sequer considerar. Nos seus momentos de glória – que são alguns – é sublime.
E isso, não sendo tudo, é definitivamente alguma coisa.
6.5/10
A outra novidade do dia é a chegada do também primeiro trailer oficial de "Noah" de Darren Aronofsky.
Com chegada marcada aos cinemas para março de 2014, esta é uma adaptação da história bíblica na Arca de Noé. Num mundo consumido pelo pecado humano, Noé recebe a missão divina de construir uma Arca para salvar a criação de uma grande inundação vindoura.
O filme de Aronofsky é protagonizado por Russell Crowe, Jennifer Connelly, Saoirse Ronan, Douglas Booth, Logan Lerman, Emma Watson, Ray Winstone, Anthony Hopkins, Kevin Durand e Mark Margolis.
*** *** ***
Noutras paragens, a Summit lançou finalmente o primeiro trailer do muito aguardado “Divergent”, inspirado numa saga de livros juvenis.
Numa Chicago distópica inspirada na obra homónima de Veronica Roth, a sociedade está dividida em cinco classes, sendo que cada uma delas está destinada a cultivar uma virtude específica: os cândidos (sinceridade), os abnegados (altruísmo), os intrépidos (coragem), os cordiais (amizade) e os eruditos (inteligência).
Numa cerimónia anual, todos os jovens de 16 anos devem decidir a classe a que irão pertencer para o resto das suas vidas. Para Beatrice, a escolha é entre ficar com a família e poder ser finalmente quem realmente é. A sua decisão irá surpreender todos, inclusive a si própria.
Durante o competitivo processo de iniciação que se segue, Beatrice decide mudar o nome para Tris e procura descobrir quem são os seus verdadeiros amigos, enquanto se apaixona por um rapaz misterioso, que a fascina e enfurece. Todavia, Tris também tem um segredo que poderia colocar a sua vida em perigo. Quando descobre um conflito que ameaça devastar a aparentemente perfeita sociedade em que vive, percebe que o seu segredo pode ser a chave para salvar aqueles que ama... ou acabar por destruí-la.
"I think we just wanted to be part of the lifestyle. The lifestyle that everybody kinda wants"
A urgência hipnotica de uma história na qual seria impossível de acreditar... se não fosse tão inacreditavelmente verdadeira.
No enredo, um grupo de adolescentes vive obcecado com a fama e a vida do glamour, especializando-se em assaltar casas de celebridades. Na lista de vítimas constam os nomes de Paris Hilton, Orlando Bloom e Rachel Bilson. O gangue tornou-se conhecido pela imprensa como “The Burglar Bunch” e "The Bling Ring".
A inspiração e base de trabalho para o argumento surgiu do artigo de Nancy Jo Sales para a Vanity Fair - “The Suspects Wore Louboutins” - onde a jornalista investigou e entrevistou vários membros do gangue que roubou mais de 3 milhões de dólares em bens de luxo.
É sabido e garantido que a proporção de realizadores disposta a tornar “The Bling Ring” num conto de moralidade ou numa observação que se distancia para alinhar um comentário crítico bem delineado e vísivel à aventura juvenil facínora. Mas Sofia Coppola, sabemos nós, não é realizadora de exercícios morais óbvios. Estes adolescentes habitam um mundo de prioridades deslocadas alimentado pela exploração desumana da figura pública. A crítica aberta ao seu comportamento ou a satirização do mesmo seriam abordagens lógicas, mas a questão que importa a Coppola responder é ainda mais arrepiante: “podemos mesmo culpá-los?”.
São os Estados Unidos da Celebridade e a distorção doentia do sonho americano. O mundo – não só os boémios e inconsequentes meninos ricos de Los Angeles mais apessoada, mas no fundo, todos nós - celebra a cultura da fama como se de uma vitória bélica se tratasse. O encareceramento por posse de drogas é praticamente um rito de passagem, e a dieta estrita que seguimos ao perseguir todos os passos da nossa celebridade favorita é doentio ao ponto de lhes sabermos as posses, horários e aniversários melhor do que dos nossos amigos e familiares.
E estas pessoas, tão repletas de si mesmas e do que todos os dias compram e recebem, mal reparam se uma parte dos seus bens são roubados. Valham-nos as boas e velhas câmaras de vigilância, porque a extravagância das celebridades só é superada pela estúrdia de um grupo de jovens que não hesita em partilhar os seus feitos delituosos no Facebook (existem hoje realmente experiências se não as publicarmos nas redes sociais), gabá-los na festa mais lotada e vender e usar os ‘frutos do furto’ desembaraçadamente numa versão da Feira da Ladra em Calabasas.
A recorrência temática de Coppola mantém-se com a exploração de personagens que vivem em bolhas mágicas a invisíveis de poder e riqueza – uma realidade que desde cedo observa na primeira fila, não fosse o seu apelido um dos mais reconhecidos e respeitados em Hollywood.
O paralelismo com “Spring Breakers” de Harmony Korine é inescapável, uma vez que ambos abordam a modernização desviante do sonho americano e a desumanização da cultura moderna.
A opulência visual não desilude e é uma constante ao longo dos 90 minutos, provisionada por um trabalho de fotografia superior de Christopher Blauvert e Harris Savides (que faleceu antes de terminar o filme) e uma montagem aguçada de Sarah Flack. A banda sonora volta, sem surpresa, a marcar pontos naquela que será um dos mais eficazes e completos ambiences sonoros – não pode ser coincidência a presença repetida e egocêntrica de Kanye West.
Não sendo um exercício perfeito, o segundo ato assume uma natureza repetitiva, as figuras parentais encontram-se demasiado distanciadas e a ausência de envolvência com os protagonistas são pontos de discussão válidos e justificados.
Da mesma forma, não têm faltado vozes a levantar-se sobre a sua abordagem amoral e acrítica. Mas reflitamos por um momento: fazia-nos falta mais uma exposição moral para demonizar comportamentos desviantes? Mais um filme para nos superiorizar?
Coppola tenta algo muito mais corajoso e perturbador.
Ilusoriamente frívolo, este é o retrato de uma sociedade que perdeu as rédeas da sua própria cultura, uma geração que se acha no direito de posse de tudo o que toca, mas que é dominada por tudo o que vê.
A genialidade de “Bling Ring” é que não critica esta cultura predominante e deteriorada na humanidade, mas torna-se nela. Coppola é uma espécie de antropóloga, e o seu sonho febril povoado pelo excesso, insensibilidade e isolamento emocional é um filme-retrato do nosso tempo.
Ao apresentar o filme no mesmo plano dos seus protagonistas – vápido, distanciado da realidade e inconsequente – a realizadora identifica-os não como criminosos, mas como algo muito mais simples, direto e arrepiante: um mero produto do ambiente que os rodeia.
“In a country that doesn’t discriminate between fame and infamy, the latter presents itself as plainly more achievable.”
Lionel Shriver, "We Need to Talk About Kevin"
8.0/10