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A tragédia é a essência da humanidade, e algo a que não podemos escapar numa das mais extraordinárias estreias do ano.
Uma das grandes fatalidades do Cinema moderno é o sistema dos media. Desde a estreia em Cannes, “La Vie d’Adèle – Chapitres 1 et 2” foi etiquetado até à exaustão – o filme lésbico com uma interminável cena de sexo, cujo realizador maltratou a equipa e atores durante a produção, mas que coincidentemente também ganhou o prémio máximo no referido Festival, que pela primeira vez foi partilhado entre realizador e protagonistas.
Vendê-lo em semelhantes termos ou associá-lo a novelas descartáveis é o desserviço mais abominável que podemos fazer àquela que é, na essência, uma das grandes histórias de amor do nosso tempo e que pertence, inequivocamente, à nossa era.
Adèle tem 15 anos e é uma jovem que estuda literatura no colégio para um dia se tornar professora, como sempre desejou. Entre as aulas, o burburinho no seu grupo de amigas tem os alvos do costume – os rapazes mais atraentes da turma, particularmente Thomas, que demonstra um afeto especial pela protagonista.
Pressionada pelas amigas e pelo desejo de encontrar respostas, Adèle envolve-se com o rapaz para descobrir que nada é como esperava. Assombrada pelo vislumbre de uma carismática jovem de cabelo azul com a qual se cruzou na rua apenas uma vez, Adèle começa a questionar-se, e apesar de genuinamente não saber porquê, nesta altura todos sabemos. É a materialização do amor à primeira vista, que se regista na sua fisicalidade como na vida real – um murro no estômago e a constatação imediata e desarmante da nossa própria incompletude.
A magnética história de amor começa a escrever-se a traços cautelosos mas sólidos, e deixa-se desenvolver languidamente, ao longo dos anos, enquanto tudo e nada acontece, e os entretantos tomam lugar de destaque nos diferentes estádios do êxtase, exploração, contentamento e o tédio da estagnação. Antes conotado com a excitação da descoberta e o prazer da felicidade, eventualmente – e apesar de continuar presente em apontamentos muito interessantes, agora mais desesperados – a cor azul começa a desvanecer-se, inclusive do cabelo de Emma, e lentamente percebemos como esse pequeno sinal nos marca inquestionavelmente o princípio do fim.
Basta assistir apenas uma vez ao excecional filme do realizador franco-tunisino Abdellatif Kechiche para compreender que todos os 179 minutos são essenciais para a composição desta devastadora história de amor e descoberta.
“La Vie d’Adèle” constitui-se como uma ode aos caprichos do coração e às belezas inesperadas da vida, sobre o primeiro amor e a sua urgência, romanticismo, fisicalidade, arrebatamento, desespero e o despertar em nós do desejo dar tudo o que temos e não temos. É vívido e vibrante, e é universal e específico, versando sobre a primeira paixão, as excitantes descobertas da vida e aqueles momentos trágicos em que estragamos tudo e partimos corações – o nosso, e o do outro. É celebração explosiva de glória e dor, um nervo exposto e uma janela para dentro da vida – magoa e deixa marca como ela, mas, de alguma forma, deslumbra com o seu poderio.
Na verdade, é impossível não refletir sobre o quão raro é para um filme tentar sinceramente retratar a realidade do que é apaixonarmo-nos por alguém, sem sentimentalismos falsos, ou músicas pirosas, ou manipulações emocionais baratas. Se tivesse de apontar um equivalente próximo e recente no exemplo americanizado, “Blue Valentine” de Derek Cianfrance surge em mente, mas “La Vie d’Adèle” joga noutra liga completamente diferente, vai muito mais fundo, e expõe muito mais debilidades humanas, e é muito mais cru e real.
À parte de uma disputa escolar pouco simpática, o filme de Kechiche não é, como poderia bem ter sido, um filme de movimento, ou anexo a uma narrativa tradicional da “saída do armário”. Não é uma tese sobre a intolerância, ou um esforço declarado para abordar uma questão social pungente. Muito mais central é a relação e a sua dinâmica, o que resulta e não resulta, as compatibilidades e as diferenças que são relacionáveis com qualquer pessoa. Não sendo um filme político ou reivindicativo, acaba por triunfar nos meandros dessas contendas revolucionárias por apresentar a universalidade do que é a paixão e a manutenção árdua de uma relação.
As já “famosas” cenas de sexo não são chocantes ou perversas, porque são autênticas e inseridas na verdade da história de Adèle. O sexo, além de constituir uma parte essencial da jornada da protagonista, é ainda retratado com uma emoção fluída, mercurial, quase palpável. Como outros elementos – como seja a presença da comida e a sua utilização no contraste entre os mundos dissemelhantes de Emma e Adèle – é essencial à rica construção geral de Kechiche. O seu objetivo é, não só demonstrar a influência poderosa do desejo sexual nas emoções, como ainda permitir ao espectador compreender – vendo, em oposição a ouvindo falar sobre - a profundidade da paixão partilhada.
Inspirando-se livremente na banda desenhada de Julie Maroh (“Le Bleu est une Couleur Chaude”), Kechiche livra-se ainda de um dispositivo melodramático - que culminava com a morte trágica de Adèle, ou Clémentine, como na verdade se chamava na origem - para examinar um outro drama, uma outra morte, mais abstrata, quiçá ainda mais devastadora.
Pela primeira vez no festival de Cannes, a Palma de Ouro foi oficialmente entregue a dois atores, além do realizador – quem normalmente recebe a distinção. É fácil compreender porquê: Adèle Exarchopolus e Léa Seydoux leram o guião apenas uma vez, sendo depois estimuladas pelo realizador a improvisar as suas cenas e deixar as ações e palavras fluir o mais naturalmente possível. De facto, esta é uma construção edificada a três pares de mãos. Os altos e baixos da relação têm uma ressonância tão poderosa graças às interpretações fora de série das duas atrizes e o seu compromisso sem barreiras a estas personagens inolvidáveis.
A Emma de Seydoux é uma criação magnífica, aliando uma imagem enigmática, quase mística a uma natureza livre, bondosa e verdadeira no amor que expressa por Adèle. Todavia, o filme pertence à mulher que lhe dá nome: em cena em praticamente todos os momentos, Exarchopoulos é uma revelação.
Numa performance de instinto e intuição, e com apenas 18 anos na altura de rodagem, Exarchopoulos corporiza a crónica da maturidade de Adèle de uma forma simples e subtil que contrasta com a sua evocação do arroubo do amor e do desejo naquele que se subentende ser o primeiro capítulo do filme. Se, numa primeira instância, Adèle não sabe o que quer, depois quer tudo, e os seus desejos e ardores são esmagadores. O alcance do trabalho de um ator é completamente revolucionado e as possibilidades tornam-se, com o trabalho da jovem atriz, infinitas. É, até ao momento e na minha opinião que se julgava inabalável depois de ver Cate Blanchett em “Blue Jasmine”, a melhor e mais completa performance do ano.
Enquanto par, Exarchopolus e Seydoux são absolutamente destemidas, e a relação que criam no ecrã é tão orgânica que chega a desafiar a noção de “química entre atores” para apresentar uma nova possibilidade – o retrato fiel onde a abstração de que estamos perante uma obra de ficção é total.
Em retrospetiva, o Cinema é muitas vezes referido como o grande meio criado pelo Homem, proporcionando a possibilidade de mergulhar noutra história que não a nossa, vivendo assim novas vidas e experiências que o tempo que por cá passamos não permite. Na maior parte das vezes, essa possibilidade não é preenchida, e o Cinema acaba por funcionar mais como um meio de escapismo do que propriamente identificação e extensão da vida. No entanto, de vez em quando, surgem os raros filmes que incitam à descoberta, que se cosem a nós, que nos propiciam crescimento e introspeção, e que nunca mais nos abandonam.
Quando chegamos, batidos e devastados, à última mas esperançosa passagem de “La Vie d’Adèle”, damo-nos conta que Kechiche desenhou um autêntico mapa da alma humana, e tudo fica bastante claro. Deixamos o Cinema com um nó na garganta, e partimos de novo como adolescentes enfeitiçados pelo primeiro amor, mesmo que esmagados pela crueza da realidade. A nível pessoal, e desde que o ar frio daquela noite de novembro chocou o meu corpo quente e amedrontado, depois de três horas de reflexão pessoal e humana, nunca mais deixei de ver Adèle.
Todos os dias, em todo o lado.