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"That's how it starts. The fever... the rage... the feeling of powerlessness that turns good men cruel"
Permitam-me a indulgência de uma pequena viagem no tempo. Estávamos no esquizofrénico e atarefado ano de 2007 quando tudo começou.
O terrível Massacre de Virginia Tech tinha arrasado o mundo, o Futebol Clube do Pinto da Costa preparava-se para conquistar um novo campeonato, a pequena Maddie McCann não deixou rasto na praia da Luz, o primeiro episódio de Mad Men foi para o ar na AMC, o Cavaco já era a nossa múmi...Presidente, a Britney Spears rapou o cabelo e um filme protagonizado por Will Smith previu o futuro.
Todos estes são temas merecedoras de extensas teses de investigação, particularmente o colapso emocional da um dia considerada Princesa da Pop, mas para efeitos de eficácia e proximidade ao tema, vamos focar-nos no último.
Em “I am Legend”, Smith é um sobrevivente de um apocalipse em Nova Iorque, e algures na cidade destroçada pode ser visto um enorme billboard com um logótipo de Batman Vs. Superman datado de 15-05-2010. O peculiar easter egg nada mais significou do que um mero exercício de divertida futurologia, mas curiosamente, em pleno 2016, o saldo de apocalipses alimentado por criaturas de péssimo CGI continua felizmente negativo, contudo, a titânica profecia cinematográfica concretiza-se com o atraso e toda a pompa e circunstância que lhe seria adivinhada.
Cronologicamente falando, “Batman V. Superman: Dawn of Justice” é apenas o segundo filme na cronologia do Universo Cinematográfico da DC Comics, seguindo de muito perto os acontecimentos do primeiro – “Man of Steel” (2013). Abre-se o pano com a célebre, (anti)climática e estupidamente destrutiva batalha de Super-Homem contra o General Zod vista pelo ponto de vista de Bruce Wayne – e as semelhanças com uma espécie de 11 de setembro à vista do Ground Zero não são totalmente inocentes.
Volvidos dois anos dos fatídicos acontecimentos, Wayne, que entretanto colocou as vestes negras de combate ao crime na reforma, ainda culpa o alienígena com tiques de Deus pelos milhares de inocentes mortos no intergaláctico incidente, e será este ódio (e potencial ciúme pelo tratamento religioso que Kal-El recebe pela imprensa e população generalizada) que alimentará o violento confronto entre o Cavaleiro das Trevas e o Homem de Aço... pelo menos até ao eventual aperto de mãos resolvido em questão de minutos e necessário em face de males maiores (e mais horripilantes) trazidos a bom porto pelo vilão Lex Luthor.
Há algures entre os escombros de Metropolis um filme fascinante sobre a fenda ideológica e moral que divide Batman do Super-Homem, mas muito provavelmente, Zack Snyder não era o homem para o fazer. A economia e a nuance nunca foram os seus fortes e as questões que coloca são demasiado óbvias – e mesmo assim, nem sempre com lógica ou resposta - mas há créditos que lhe são merecidos: o homem sabe fazer um filme grandioso.
Grande em todos os sentidos e mais alguns, “Batman V. Superman” é uma orgia de ação fantasiosa que é um deleite para os olhos – alguns momentos são mesmo de inequívoca e gloriosa poesia visual. Para quem procura escala e beleza em esteroides, não deverá sair defraudado, mas no ponto da história em que estamos no ciclo de Super-Heróis nascidos e criados em Hollywood... será o suficiente?
A promessa inicial é bastante auspiciosa, toldando a mente e o espírito de dois dos grandes heróis dos nossos tempos com emoções tão humanas como o ódio e o medo do desconhecido. Todavia, e ainda que o célebre mano-a-mano seja uma espécie de escrito religioso para os aficionados da B.D., “Batman V. Superman” não o serve particularmente bem. Volvidas duas horas e meia de muita conversa, porrada grossa e buracos que tornam o argumento uma espécie de estrada de cabras, o resultado não deixa de se revelar pouco satisfatório – suficiente para manter o interesse, mas incapaz de induzir o delírio por uma realidade fantástica para onde, na verdade dos factos, não conseguimos ser sugados.
A divisão moral entre os dois heróis é eficientemente delineada, denotando-se uma clara tentativa de exploração dos motivos humanos e filosóficos da história. No entanto, perde-se repetidamente entre o estilo bombástico e um exagerado sentido de grandiloquência que se inunda na sua própria mitologia, tornando-se assim difícil avaliar Batman V. Superman. Se, por um lado, nunca transcende o ponto de se tornar uma experiência verdadeiramente memorável e plena, por outro, também é demasiado competente e grandioso para poder ser apelidado de desastre.
De facto, o peso sobre os ombros desta produção é quase sobrehumano; até para a aliança entre o mais poderoso dos nossos amigos alienígenas e o mais “acessorizado” dos heróis – estamos a olhar para ti, utility belt. É que o titã cinematográfico de Zack Snyder não representa apenas a primeira adaptação cinematográfica de um confronto épico para abalar todas as eras mas também a rampa de lançamento oficial para o Universo Expandido da DC Comics. É uma tarefa geralmente ingrata, a de estabelecer a base sobre o qual vai assentar um império que, para já, tem cerca de outras 10 produções agendadas. Torna-se isto portanto uma espécie de maleita crónica, sofrendo-se das consequências da necessidade de lotar o enredo de sub-plots (para já) desnecessários, cameos metidos a martelo e estabelecer bases do universo cinematográfico a metro (ou quilómetro).
Surpreendentemente e contra todas as críticas que se vieram acumulando desde o anúncio do seu casting, Ben Affleck revela-se um sólido sucessor de Christian Bale, ainda que o seu Bruce Wayne seja largamente mais complexo que o seu Batman - apesar de se identificar como uma variação intrigante do Cavaleiro das Trevas (mais brutal do que bruto), entra em colisão com alguns dos princípios fundadores do personagem, mais precisamente a sua “regra única” contra a morte dispondo uma série de preocupantes disposições sádicas que o colocam perigosamente perto do precipício que se eleva entre um anti-herói e um vilão assumido.
Do outro lado da barricada, e apesar de ser possivelmente o mais imponente e fisicamente capaz de todos os Super-Homens, Henry Cavill continua a hercúlea e desmerecida tarefa de levar avante a história daquele que será, por ventura, também o mais taciturno de todos eles. Cavill, que já provou os seus dotes de charme, timing cómico e carisma em filmes como “The Man from U.N.C.L.E.”, parece sofrer aqui uma vez mais das limitações criativas impostas pelo arco do personagem que perde muita potencialidade por abandonar toda a leveza pontual que lhe conhecíamos de outras incursões e que fazia, inclusivamente, a separação (agora virtualmente inexistente) entre a persona de collants e o atrapalhado jornalista do Daily Planet – assim fica a parecer mais uma benevolente pedra de collants e capa... mas uma pedra atraente, ainda assim.
O elenco secundário traz melhores, ainda que breves, surpresas, com Amy Adams a ter ligeiramente mais tempo de antena e ação com a sua Lois Lane e Jeremy Irons a criar um contraponto forte com o Alfred de Michael Caine na saga de Christopher Nolan, sendo desta feita não tanto um mordomo mas um sardónico e seco companheiro no (combate ao) crime de Batman. Todavia, o grande destaque vai invariavelmente para a (quase) estreante Gal Gadot, a ex-Miss Israel que também cumpriu serviço militar no Exército durante dois anos. A sua Wonder Woman é a primeira incursão de sempre da personagem no grande ecrã, mas apesar do tempo limitado em cena, chega para deixar no ar um perfumado carisma e sentido de mistério que acompanharemos com curiosidade até à estreia do seu episódio a solo, agendado já para o próximo ano.
De parte das apreciações positivas deixa-se ficar o Lex Luthor de Jesse Eisenberg, que está destinado a dividir opiniões. Numa espécie de versão vilanizada do seu Mark Zuckerberg em “The Social Network”, Eisenberg assume uma posição de quase-cartoon que apesar de extremamente distrativa, pontualmente exagerada e dificilmente levada a sério (especialmente no contexto de contacto próximo e persuasivo com líderes de nação), não só permite o vislumbre psicótico dos seus motivos quase teológicos como parece ser, na verdade, a única pessoa que parece estar a divertir-se no ecrã, o que por si só já vale um pontinho de honra.
Nos limites balança da apreciação, “Batman V. Superman” contém vários elementos positivos e extremamente merecedores de recomendação, mas também deficiências demasiado óbvias para ignorar.
Não é caso para dizer que, no mundo de hoje, todos os filmes de Super-Heróis devam ser como os da Marvel – equilibrando ação, história e gravidade com uma leveza assumida na forma de one-liners para a posteridade. De facto, cada herói tem a sua história e a transformação cinematográfica da DC tem vindo a apostar mais no lugar cinzento da psique dos seus heróis, abordando temáticas mais cerebrais e, digamos assim, pesadas. Na maioria das interpretações, os filmes da DC têm-se diferenciado dos demais com os seus heróis a observar as suas habilidades e obrigações de salvação não propriamente como um dom, mas um fardo e um ponto motriz capaz de criar as mais nefastas consequências.
Essa conceção é tremendamente interessante, e potencialmente até mais capaz de, em matérias de analogia, dizer algo sobre nós, Homens e Mulheres do mundo real. Todavia, nada disso pode ou deve significar a perda do sentido de entretenimento, de positiva anarquia, de escapismo, de gozo de fazer e oferecer Cinema.
Tomando as palavras de outro habitante, de outra interpretação, do mesmo universo: why so serious?
6.5/10