Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"Receptionist: Does he have Alzheimer's?
David Grant: No, he just believes what people tell him."
Quando recebe pelo correio uma carta de um sorteio duvidoso, Woody Grant, um homem bastante rabugento e mal-humorado pensa que ficou rico e tenta convencer um dos filhos a viajar até ao Nebraska para reclamar a sua fortuna. Decidido a passar algum tempo com o pai, David sabe que o conduz para uma deceção, mas talvez seja o choque com a realidade que Woody precisa. Com paragens pelo caminho e reencontros familiares inesperados que oferecem uma luz especial sobre o passado, “Nebraska” narra, ao longo de quatro estados e com alguma dose de humor sarcástico, histórias da vida familiar em pleno coração da América.
Quase como uma versão moderna de “Dom Quixote de La Mancha”, “Nebraska” opõe as considerações delirantes de um protagonista à beira da senilidade com a dura realidade. Nunca sendo um retrato cruel ou de propósitos meramente satíricos, o filme de Alexander Payne constrói-se do desejo de permitir ao seu árido protagonista um último momento de dignidade, quando esta parece já tê-lo abandonado há muito, e para sempre.
Apesar de ser o primeiro filme de Payne não escrito por ele – aqui foi Bob Nelson quem fez as honras – “Nebraska” é “payniano” de uma ponta à outra, dando maior primazia às falhas de comunicação do que propriamente ao diálogo e alimentando, inclusive, a noção generalizada no cinema de Payne de que o ambiente e o tom podem falar mais alto do que a própria história. O truque dos contrastes aparentes volta a entrar em jogo – depois do energia vibrante havaiana esconder as duras verdades em “The Descendants”, aqui é uma realidade monocromática e quase austera que encobre um núcleo morno e doce.
A belíssima fotografia a preto-e-branco – que não parece menos contemporânea por isso – sugere, em perfeita sincronia com o argumento. Não é propriamente uma versão atualizada do Sonho Americano, porque esse, não obstante as crenças cegas de um desejo de mudança e sucesso, foi-se perdendo, algures no tempo, quem sabe numa daquelas beiras de estrada do interior. O que subsiste é o mito.
June Squibb rouba praticamente todas as cenas que protagoniza, mas o verdadeiro coração de “Nebraska” está evidentemente ancorado à corajosa performance de Bruce Dern, que ganhou mesmo o prémio de Melhor Ator no Festival de Cannes do ano passado. O mecanismo utilizado para explicar Woody e o seu estado é delicioso - ao invés de flashbacks ou confissões palavrosas, são os encontros ao longo do caminho que o mostram como alguém que se mostrou disposto a compromissos e sacrifícios imensos que justificam hoje o seu alheamento, e os silêncios e olhares distantes de Dern falam mais alto do que qualquer discurso.
Apesar de empático e esclarecido quanto ao seu papel na trama, Will Forte (ex-membro do SNL) não deixa de parecer algo deslocado ao lado da Dern e Squibb, especialmente se considerarmos que atores como Paul Rudd, Casey Affleck e Bryan Cranston foram considerados para o papel de David.
Tendo seguido praticamente toda a filmografia de Alexander Payne, tenho dificuldade em compreender o apelo, a distinção como um dos grandes realizadores americanos contemporâneos. Os seus filmes nunca chegaram até mim – desenvolvi um “ódio de estimação” muito particular a “The Descendants” – ou eu nunca cheguei até eles, a pontos de os conseguir ver como obras completas, totalmente maduras ou absolutas.
Mas não obstante o contínuo sentimento de que o Cinema de Payne parece sempre algo incompleto e rascunhado, existe algo intensamente profundo da possibilidade de acompanhar esta viagem predestinada ao longo das estradas americanas. O verdadeiro impacto dos seus pequenos momentos, aparentemente desconexos e pouco significantes, só se regista mais tarde, numa retrospetiva íntima e encantadora – Payne compreende que são os entretantos, os não-acontecimentos que alimentam o grosso da nossa existência.
É difícil declarar que “Nebraska” é um filme negativista ou derrotista. Não o é exatamente. Mas é uma fatia da vida que o brilho de Hollywood, da cultura pop e do brilho da fantasia do sucesso tentou cobrir com uma espessa pasta de ilusões. Por baixo permanece um bolo que nem é muito bom, nem é muito mau, mas uma receita estranha e falhada, cuja figura imponente na montra apenas abriu alas a uma peculiar desilusão.
A lotaria da vida parece estar ao virar da esquina, à distância de um mero toque. Às tantas, o nosso momento de glória parece ter chegado, e tem os ares de revolução monumental… mas materializa-se apenas numa miniatura agridoce.
“Nebraska” pode aparecer assim um sujeito de envergadura pesada, que por vezes se arrasta languidamente. É tudo parte de um plano, de uma visão que nos pretende trazer de volta à realidade, furar a cobertura e olhar à volta do mundo aborrecido e cinzento que nós – os comuns mortais que representam 99% da população mundial - habitamos.
No final de contas, creio que será a sua própria experiência, visão de vida e estado de espírito a ditar o seu ponto de vista sobre o mais recente filme de Alexander Payne. Porque aqui o sonho pode pensar que comanda a vida, mas a vida trata sempre de o por no seu lugar.
8.0/10