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“I prefer to die with my boots on”
Movido a combustível de mais uma magnética performance do renascido Matthew McConaughey, “Dallas Buyers Club” é a crónica de uma luta pela dignidade e aceitação movida pelo poder transformador da resiliência.
Ron Woodroof é um cowboy do Texas cuja vida sofre uma reviravolta quando, em 1985, lhe é diagnosticado o vírus da SIDA e previstos apenas 30 dias de vida. Vivem-se os primeiros momentos desta epidemia e os EUA estão divididos sobre como combater o vírus.
Ostracizado por muitos dos seus antigos amigos e sem acesso a medicamentos eficazes comparticipados pelo governo, Ron decide tomar conta do assunto e procurar tratamentos alternativos em qualquer parte do mundo por meios legais ou ilegais. Ignorando as regras estabelecidas, o empreendedor Woodroof une forças com um improvável grupo de renegados e marginalizados - que ele próprio teria evitado no passado - e estabelece um "clube de compradores" de enorme sucesso.
O argumento não se reserva a oferecer soluções ou declarações, recusando-se, inclusive, a tornar Woodroof num cavaleiro intocável ou um sagrado messias, mantendo os seus traços mais rudes e grosseiros enquanto ajuda a (não salvar, mas) prolongar incontáveis vidas condenadas. É esta, por ventura, a verdadeira beleza do filme de Jean-Marc Vallée – resiste à redenção e ao feel-good para contar uma história real, terna quando assim se pede, crua quando tem de o ser.
Mas além da trajetória algo clássica e previsível do argumento, que inclui um terceiro ato cujo ritmo pode ser questionado, “Dallas Buyers Club” é sobretudo um palco de interpretações que, apenas por si, valem o bilhete de entrada.
Há 20 anos, McConaughey entrou no mapa de Hollywood com uma surpreendente performance no clássico juvenil “Dazed and Confused”. A promessa era inestimável, mas de alguma forma, os anos 90 não o serviram de feição e a chegada do novo milénio marcou a definitiva viragem. Fazendo o desfile da praxe pelas comédias românticas e filmes de ação leve, McConaughey andou ocupado a ser uma Estrela e foi apenas na viragem da segunda década dos 2000 que resolveu tornar-se um (grande) Ator.
A ressurreição mais impressionante desta geração começou a passo calmo, em 2011 com o thriller “Lincoln Lawyer” e a surpreendente comédia indie “Bernie”. Mas entre 2012 e 2013 o jogo mudou de nível. Desde “Magic Mike” a “Mud”, não esquecendo uma carismática passagem por “The Wolf of Wall Street”, a coroação definitiva de McConaughey chega com “Dallas Buyers Club”.
A sua transformação física (perdeu mais de 20 kg) é apenas uma das camadas que atestam o seu compromisso à arte se criar uma personagem tão exigente e complexa como Ron. McConaughey é hipnotizante em todas as cenas, não facilitando no retrato de um homem duro e calejado, e um dos grandes anti-heróis entre os anti-heróis do nosso tempo.
Era de esperar, assim, que o filme fosse totalmente carregado pelo físico já não tão proeminente do ator texano, mas há alguém mais com quem dividir os louros, e alguém tão surpreendente como ele. Jared Leto, o vocalista dos 30 Seconds to Mars que divide a sua vida entre os palcos e os sets desde os anos 90 volta ao grande ecrã no seu primeiro papel em cerca de 5 anos de ausência.
Partindo desde já como o grande favorito a todos os prémios na sua categoria – Melhor Ator Secundário – Leto criou uma personagem para a posteridade, uma alma doce e perfurada pela dor que é o catalisador da transformação de Ron. É um retrato autêntico e uma verdadeira revelação.
A química entre os dois atores é inegável e a sua relação é tocante mas não inverosímil ao ponto de cair nos clichés do “bromance” de Hollywood.
Infelizmente, Jennifer Garden perde o comboio das grandes interpretações, sendo que a sua personagem existe apenas para ajudar a história a avançar, nunca ganhando uma vida própria ou, sequer, interessante.
“Dallas Buyers Club” é, não só mas sobretudo, uma obra que se faz valer das assombrosas performances dos seus protagonistas, que conferem uma resiliência à verdade dos seus personagens, não obstante o seu destino irreversível.
Além das graves e emergentes questões que coloca sobre a legitimidade e boa-fé das ações levadas a cabo no universo das empresas de fármacos, da comunidade médica e da FDA – e que por si só chegariam para encher várias páginas de teses de mestrado e doutoramento - há uma energia muito particular no centro de “Dallas Buyers Club”, que eleva a significância da sua luta de um grupo de renegados contra o sistema imposto pelo Homem, e da fascinante interseção do interesse, empreendedorismo e altruísmo do seu protagonista.
Não é fácil ou particularmente otimista, mas duro, poderoso e derradeiramente revelador.
8.0/10