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"Eu como comunistas ao pequeno-almoço!"
Começo por afirmar com toda a veracidade: o lápis azul não teve nada a ver com a minha impressão extremamente positiva desta história dos livros que foi virada do avesso para nos fazer rir com heróis que são os maus da fita.
A base da comédia de João Leitão está no mistério verídico de uma série televisiva em produção entre 1973 e 1974, CAPITÃO FALCÃO. Este renascimento do ícone para o séc. XXI conta a história de um super-herói Português (o primeiro!) ao serviço do Estado Novo. Juntamente com o seu sidekick, Puto Perdiz, Falcão combate todas as ameaças à Nação, que incluem os terríveis comunistas, os impiedosos Capitães de Abril e as arrogantes feministas, respondendo a um homem apenas: António de Oliveira Salazar. Mas estranhos acontecimentos e uma ameaça democrática começam a invadir a capital… Conseguirá Capitão Falcão salvar o dia?
Leitão trabalhou no “filho adorado” por mais de seis anos, e apesar de ser um estreante nas lides cinematográficas, dirige as operações com o engenho e calma de um veterano. As inspirações e influências são várias e vão desde os filmes franceses do OSS: 117, às séries de Batman, Allô Allô e Blackadder, e sem esquecer a preponderância clara de Chaplin, Jackie Chan e Bruce Lee no processo criativo.
Gonçalo Waddington foi o ator (sabiamente) escolhido para trazer à vida um poderosíssimo e carismático protagonista fascista de bigode de uma acídica e perversa sátira política sobre o Antigo Regime, que toma partido de um ponto-de-vista único e provocador.
A abordagem é profundamente teatral e declamatória, o que pode jogar em seu desfavor – não sendo uma técnica comum na indústria portuguesa, pode tornar-se cansativa e repetitiva. Não obstante a originalidade do conceito, o bom ritmo e do sucesso generalizado da sua transposição para o grande ecrã, sente-se, em determinados momentos, que o humor também não é suficientemente robusto para aguentar a totalidade da película.
Todavia, CAPITÃO FALCÃO é uma redonda vitória portuguesa. É uma espécie de blockbuster, acessível em género e em tema, que resplandece criatividade - no horizonte paira a interessante hipótese das sequelas, dependentes, evidentemente, da adesão do público.
O cuidado na construção de um "falso mau filme" – e é preciso que atentemos que este próprio esqueleto é intencional e parte essencial do deboche generalizado – é extremo, desde as sofríveis montagens de veículos em movimento, às lutas inspiradas nas artes marciais. Mas as diferenças não se esgotam no ecrã e viajam até à promoção cuidada, que alia aos tradicionais tv spots e trailers da praxe, a uma miríade de concursos de grafismo e uma página de Facebook hilariante, dirigida pelo próprio Capitão.
Mostra-se uma vez mais necessário lembrar que o cinema português atravessa um longo deserto de desamor, de desapego com o público que tem de conquistar para respirar numa ambiência de asfixia. Ao fechar-se sobre si mesmo, afasta o elemento de que mais precisa. Por isso é que precisamos do Capitão Falcão.
Precisamos de heróis metafóricos para fazermos as pazes com a indústria que já amámos e respeitámos, e para conseguirmos voltar a sentir o orgulho coletivo de comprar o bilhete para um filme português. Precisamos de comédias que não são fáceis, de dramas que não cheiram a novela e de fantasias que nos transportem para longe.
E não é que não se faça já bom (ou, em alguns casos, excelente) cinema português – o problema é que o público e o meio se perderam demasiado pelo caminho, e os laços têm de ser reconstituídos.
Este CAPITÃO FALCÃO não é perfeito, mas é uma tremenda lufada de ar fresco, um certeiro tiro no escuro de um género inexplorado, uma explosão de (bom!) entretenimento e uma seta do cupido apontada ao coração português.
E agora pirem-se daqui e vão ver o filme, senão o Capitão vai à vossa casa e limpa-vos o sebo.
8.0/10