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"Anxiety, nightmares and a nervous breakdown (...) there's only so many traumas a person can withstand until they take to the streets and start screaming."
Woody Allen sempre escreveu bons papéis para mulheres, mas Jasmine parece ter sido agraciada com a magia da intemporalidade.
Em “Midnight in Paris”, Allen reconquistou muitos corações com a sua ode à nostalgia de um cinderella man que ao bater meia-noite mergulhava nos confins de Paris para acordar delirante no epicentro da explosão artística dos anos 20 e beber uns copos com F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway e Pablo Picasso.
Dois anos depois, a fantasia fica na gaveta, bem como o tom leve - mais para o humorístico do que para o dramático - para o realizador americano regressar a um tema que domina tão bem e que, ainda assim, tinha andado tão afastado da sua obra dos últimos anos: a neurose.
Tomando como inegável fonte de inspiração o clássico de Tennessee Williams – “A Streetcar Named Desire” – a queda (e subsequentes réplicas) de uma socialite desdenhosa é a base para a exploração da crise existencial e remoinho ilusório orquestrada por Allen.
“Blue Jasmine” é assim a sua poderosa declaração anual que se debruça sobre a exploração da loucura como uma expressão daquilo que alguém – neste caso, Jasmine – é. A harmonia entre a tragédia do drama do estado de coisas desta mulher e o humor negro que ocasionalmente surge respirando pelos seus poros é a grande arma do título, que a usa com orgulho e finesse.
A estrutura - bipartida e alternando-se entre o passado sumptuoso de Jasmine e o seu presente menos nobre - nem sempre proporciona o desenrolar narrativo mais fluído roubando, inclusive, várias cenas da sua completa recompensa emocional. O problema com a grande parte da obra de Allen dos últimos 15-20 anos é que o realizador parece reunir energia para algumas excelentes ideias, como quem organiza uma mesa de snooker para um grande e promissor jogo, dando depois uma potente tacada que enfia, de uma só vez, várias bolas, mas que acaba por deixar outras tantas à deriva.
Mas à sua maneira, “Blue Jasmine” encapsula na perfeição aquilo que é o todo da carreira do realizador – uma criatura imponente, nem sempre regular, mas que exige a nossa atenção. Porque nos momentos em que estamos prestes a dar-nos por vencidos no seu imaginário neurótico, ele carrega no acelerador e o que nos oferece é unicamente tocado pelo brilho da genialidade.
Como é costumeiro, muito do crédito de uma filme de Woody Allen é do próprio Woody Allen, mas aqui parece mais do que certo, imperativo mesmo, reparti-lo com Cate Blanchett, cuja criação é digna de figurar na resposta assertiva à pergunta: “o que é o trabalho do ator?”.
O enigma de uma performance tão eletrizante é profundo: como é possível tornar uma mulher tão egoísta e desprezível em alguém com quem nos conseguiremos preocupar ao longo de 90 minutos? Blanchett é ardente, comovente, perdida. O génio desta construção é que convém a urgência extrema das suas verdadeiras preocupações e a forma como vemos - como se de um límpido vidro se tratasse - que esta é uma mulher em guerra consigo mesma, a lutar com os fardos da realidade. Maior do que a vida, Blanchett arrebata os nossos corações com uma personagem que secretamente desejamos odiar, numa performance que está além do brilhante, e que fica à margem qualquer análise.
No elenco secundário, e estabelecendo um estrondoso contraste com a protagonista, é bom que não se deixe passar ao lado a presença cativante e casual de Sally Hawkins, a sua fabulosa química com Bobby Cannavale e a colaboração honesta, dura e surpreendente de Andrew Dice Clay, como o amargurado ex-marido de Ginger.
Há uma qualquer fusão de desespero e prazer que confere a “Blue Jasmine” um lirismo trágico irresistível – o que começa como uma espécie de caricatura ao elitismo social, termina num retrato vívido e cru sobre a miséria de uma alma quebrada e perdida, que se recusa a abandonar os resquícios de uma bolha que um dia a isolava da realidade.
Jasmine já não é a “mulher-troféu” mal a encontramos pela primeira vez, naquele voo para São Francisco, tagarelando incessantemente sobre o que foi e já não é. Mas de alguma forma, o estatuto de troféu continua lá, como algo criado à imagem da nossa mais profunda admiração. Este é um retrato e uma criação inolvidável e isso não está apenas escrito nas estrelas; está tatuado nas chamas e imortalizado na história do Cinema.
8.5/10