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"Look, if you're going to do this, you're going to do this... You can't build cover stories around a movie that doesn't exist. You need a script, you need a producer."
Espiões e cineastas. Ambos são mestres do disfarce e da trapaça. No novo filme de Ben Affleck, juntam forças para contar uma das histórias mais curiosas do ano e um das missões-embuste de maior sucesso da CIA.
Baseado em factos reais, “Argo” narra a operação secreta para resgatar seis americanos que foram feitos reféns em Teerão, no Irão – uma verdade escondida por décadas.
A 4 de novembro de 1979, quando a revolução iraniana atinge o ponto de ebulição, vários militantes atacam a embaixada e levam mais de 50 americanos como reféns. No meio de uma anarquia caótica, seis conseguem escapar e refugiam-se na casa do embaixador canadiano. Tony Mendez, um especialista da CIA em “exfiltração”, sabe que é uma questão de tempo até serem encontrados e mortos, pelo que arquiteta um plano arriscado para os colocar em segurança. Um plano, que só poderia acontecer nos filmes.
É raro que um daqueles que chamamos “atores-estrela” faça uma transição legítima e aceitável para a cadeira de realização. Clint Eastwood e Robert Redford são casos notáveis do passado “mais ou menos” recente. E depois de George Clooney, parece que podemos adicionar Ben Affleck a esse clube restrito.
Cinema irónico e de suspense polvilhado com humor, é o que nos oferece o ator-realizador que tem desenvolvido um gosto particular para o thriller que radia autenticidade. Seguindo "Gone Baby Gone" (2007) e “The Town” (2010), “Argo” atinge um novo nível de engenho na arte ao dilatar a amplitude, complexidade e veia cómica.
O argumento é de uma qualidade rara na Hollywood moderna, e é curioso que tenha surgido de um novato nessas lides. Chris Terrio deixou-se emergir completamente na natureza dos thrillers dos anos 70 ao mesmo tempo que se atirou de cabeça ao estudo de caso que se apresenta no cerne de “Argo”, tendo o próprio acrescentado vários detalhes que não se encontravam no artigo de 2007 de Joshuah Bearman para a Wired que inspirou o filme – “Escape from Tehran: How the CIA Used a Fake Sci-Fi Flick to Rescue Americans from Iran”.
À imagem de filmes como “All the President's Men” ou “Three Days of the Condor”, “Argo” encontra nas conversas, maquinações e planos entre meia dúzia de tipos de fato a ação que, no género, normalmente se serve generosamente de doses industriais de tiros, corridas e explosões. Uma “Missão Impossível” sem os efeitos especiais, digamos assim.
A fotografia de Rodrigo Prieto acomoda-se na perfeição na edição frenética de William Goldenberg, que corta entre eventos e locais num voo de entusiasmantes altitudes. O design de produção, direção artística e de sets, bem como o guarda-roupa merecem as melhores honras, tendo construído aquele que será por ventura um dos visuais cinematográficos mais realistas e detalhados do ano.
Nas interpretações, Ben Affleck é, provavelmente de forma intencional, extremamente comedido, criando na verdade um “herói” relativamente pouco interessante, questão esta que só serve para exaltar o elenco secundário, que declaradamente se destaca – nota especial para a dupla Hollywodesca de Alan Arkin e John Goodman, que funcionam como os verdadeiros mecanismos de comic relief que se equilibram com a tensão da ação no Irão.
No fundo, “Argo” é um daqueles exemplos claros onde toda a gente – desde os atores ao realizador, passando pelo argumentista e pelos responsáveis de guarda-roupa – conhece profundamente o tema que aborda, e se propõe a servir ao máximo a história que conta. O contexto político da crise de reféns é gerido com inteligência máxima em vários momentos, acrescentando-se aos desenvolvimentos um prólogo que explica, em traços gerais e inteligíveis, a revolução Iraniana e a forma como esta se descontrolou.
Infelizmente, e às tantas, mostra-se demasiado encantado com a sua premissa mirabolante e apesar de parecer pretender distanciar-se de tais intentos, acaba por revelar traços de jingoísmo e xenofobia, entre passagens redundantes que, noves fora, tornariam o todo bem mais atrativo. Nada demasiado grave ou fora do normal, mas que o diminui substancialmente da importância cultural e social que podia almejar.
Numa era em que sentimos olhos, ouvidos, inteligência e mente violentados por tantos lados, é um alívio ver que existem filmes que ainda respeitam a audiência enquanto lhe oferecem material de qualidade, altamente instigante, e cujo peso é exponencialmente aumentado pela sua significância contemporânea.
Sim, é o tipo de filme que ganha Óscares. Não, não é o melhor filme que poderia ser. Mas mesmo assim, é muito bom. A época “pós-verão-blockbusteriano” ou dos “esperançosos dos Óscares”, como lhe preferirmos chamar, está oficialmente aberta. And it starts with a bang.
8.0/10