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Hollywood, 1947. Eddie Valant, um detetive com pouca sorte, é contratado para encontrar provas de que Marvin Acme, o grande e divertido industrial dono da cidade dos desenhos animados, se anda a ‘divertir’ com a sexy Jessica Rabbit, mulher da super-estrela Roger Rabbit. Quando Acme é encontrado morto, todos os indícios apontam para Roger e o sinistro e poderoso juiz Doom está decidido a prendê-lo. Roger implora a Valiant para encontrar o verdadeiro assassino e as coisas complicam-se quando Eddie desmantela escândalo atrás de escândalo e se apercebe que a própria existência da cidade dos desenhos animados está em perigo.
Este poderia ser o início de muita coisa: de uma valente trip de ácidos, da ruína de um realizador alucinado, do fim de um género híbrido e incompreendido. Ainda que a questão da trip de ácidos não esteja totalmente fora da equação, Who Framed Roger Rabbit ousou, no entanto, ser uma outra coisa, que possivelmente nenhum de nós esperávamos: um clássico de culto revolucionário.
Eu sei o que alguns de vocês podem estar a pensar: “olha esta desgraçada andou-se a drogar e agora viu um computador à frente e é o vê-se-te-avias“. Respondendo ao hipotético insulto, não, não confirmo nem desminto o consumo de substâncias psicotrópicas, mas sim, reafirmo o estatuto deste peculiar filme sem que peque por falta de justificação – até porque razões não faltam.
Comecemos pelo facilmente mensurável e quantitativamente reconhecível. Em 1988, Who Framed Roger Rabbit foi o segundo filme mais rentável da indústria (ficando apenas atrás de Rain Man) e tornou-se a animação a ganhar mais Óscares da história (três galardões). Demorando uns intermináveis 14 meses de pós-produção, foi também e e foi o filme mais caro a ser produzido em Hollywood nos anos 80 (com um chorudo orçamento de 70 milhões de dólares - hoje facilmente ultrapassáveis pelos Avatares e Vingadores desta vida, mas na altura uma autêntica pipa de massa).
Mas números à parte, o que torna Who Framed Roger Rabbit um prodígio do cinema contemporâneo é tão somente a sua própria natureza e as suas exclusivas valências – pode parecer difícil de acreditar, mas este maníaco e inteligente cromo cinematográfico é um filme revolucionário para a indústria e muito mais importante para as noções artísticas e financeiras do cinema do que podem pensar.
Ora este nosso clássico de culto funde live action com animação tradicional, polvilhando tudo com um enredo surpreendentemente intrincado e complexo, com referências à Depressão Americana, ao film noir, a um sistema de traições e violência e a um homicídio com direito a chantagem forçosa. Foram também estes elementos inesperados e inequivocamente arriscados que enovoaram uma linha até aqui bem estabelecida entre o que eram filmes para crianças e para adultos. De facto, o projeto de Zemeckis foi um dos grandes responsáveis pelo renovado interesse da audiência na animação, propiciando também o famoso “renascimento da Disney” – que depois de um período conturbado (que é como quem diz, depois da diarreia criativa que atravessou) durante os anos 70 e 80 voltou a ressurgir em força nos anos 90 com uma série de produções de sucesso como A Pequena Sereia, A Bela e o Monstro, Aladino, O Rei Leão e muitos outros.
Tomando liberdades possivelmente açambarcadoras, gostava de vos puxar de volta pelas orelhas à característica mais marcada de Who Framed Roger Rabbit – o facto de misturar atores e cenários reais com animação clássica – para que possamos analisar o porquê do seu caráter revolucionário e hercúleo. Na verdade, as produções que até aqui ousaram combinar estes díspares elementos (por exemplo, Mary Poppins) são hoje consideradas primitivas quando comparadas com a produção de Zemeckis.
Richard Williams, diretor de animação, comprometeu-se a quebrar as três regras de ouro neste tipo de misturadas fílmicas: moveu a câmara o máximo possível para que as animações não parecessem coladas a um fundo inanimado, usou a iluminação e os jogos de sombras para criar enormes contrastes e efeitos inovadores e pôs os personagens animados a interagir com objetos e pessoas o máximo possível. Como podem calcular, tinha tudo para dar merda - mas miraculosamente não deu.
Em termos práticos, e porque vivíamos numa era sem as facilidades tecnológicas que hoje quase 30 anos mais tarde assumimos como garantidas, todos os frames do filme que combinassem ambos os elementos teriam de ser impressos como uma fotografia. Depois, um animador desenhava a figura animada presente nessa cena em papel vegetal, colorindo-a posteriormente à mão. É só após este processo que o desenho é transferido para o frame original utilizando uma impressora ótica. 326 trabalharam a tempo inteiro no filme, construindo mais de 82.000 frames de animação - e só de escrever este parágrafo já padeço desse mal comum e maior que assombra ser humano moderno: estou a suar do bigode.
Evidentemente, todo o projeto foi um enorme risco conjunto da Disney e da Warner – na verdade, o primeiro visionamento de teste foi um fiasco, com uma audiência sobretudo composta por jovens adultos a odiar o filme. Mas Robert Zemeckis, porque é um homem que os tem no sítio, manteve-se firme no seu projeto - na montagem e no produto final.
E ainda bem. Só assim é que nascem os verdadeiros clássicos.