Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"Chaos is merely order waiting to be deciphered"
Depois do quarto aniversário da morte de José Saramago, aproveito para navegar pela sua mais recente transposição para o universo cinematográfico.
Adam é um professor de história emocionalmente catatónico que vive o quotidiano na base da repetição entre as mesmas palestras sobre totalitarismo e uma apatia pessoal extrema. Quando decide alugar um filme depois de uma recomendação de um colega de trabalho, repara num figurante que se parece assustadoramente consigo. Futuras incursões nos créditos deste enigmático ator provam a teoria que Adam mais temia: por aí anda o seu exato duplo.
Com argumento adaptado por Javier Gullón, “Enemy” foi filmado em Toronto, em 2012, ainda antes de Denis Villeneuve e Jake Gyllenhaal terem trabalhado juntos no monetariamente mais almofadado e projetado “Prisoners”.
Operando sobre um pano de fundo de espaços urbanos opressivos, amarelos, castanhos e cinzentos, Villeneuve sugere uma história simultaneamente antiga e futurística, que muito deve à tensão de Hitchcock, à bizarria de Cronenberg, ao mistério de Lynch e à energia psicossexual de Polanski.
A hipnotizante exploração da intimidade, identidade e do reino dos desejos inconscientes quase se perde à medida que os twists do enredo se tornam mais improváveis, mas é aqui que a noção de controlo e técnica do realizador de tornam absolutamente impressionantes. É uma obra com uma narrativa glacial que é um autêntico relógio suíço, mas ainda assim cativante, com um intento quase perverso – ganhar acesso à nossa vulnerabilidade, e depois alimentar-se dela, como um predador da presa.
No elenco principal, cabe a Gyllenhaal interpretar Adam e Anthony com uma angústia e horror silenciosos – apesar de manifestamente diferentes, os duplos são os dois lados discretos da mesma moeda. Com mais uma entrada arriscada (e vencedora) na sua eclética carreira, o ator americano continua a provar porque é que é um dos protagonistas mais esfíngicos e interessantes da sua geração em Hollywood.
Mais construído à base de perguntas do que de respostas, “Enemy” é propício à geração de um animado arco de discussões sobre a estranheza do seu enigmático enredo. Desde o subterrâneo populado por tarântulas gigantes, às enigmáticas strippers mascaradas, ao plano final - por alguns considerado como o mais assustador de sempre – o filme de Villeneuve convida a visionamentos… duplicados.
Como a teia de aranha que se forma lentamente sobre a psique de Adam até ao mundo real, “Enemy” envolve-nos lenta mas inescapavelmente e aloja-se sinistramente no canto mais sombrio do nosso cérebro. Aquele que esconde todos os medos que nunca iremos entender.
E o caos permanece uma ordem por decifrar.
8.0/10
Foi lançado online o primeiro (e excelente!) trailer de "Fury", o novo drama de guerra de David Ayer, protagonizado por Brad Pitt, Shia LaBeouf, Logan Lerman, Michael Pena, Jon Bernthal e Jason Isaacs.
No enrendo, estamos situados no final da II Guerra Mundial, em 1945, durante o colapso do regime nazi. A história que acompanhamos é a de cinco homens da tripulação de um tanque norte-americano chamado Fúria que enfrentam uma unidade desesperada do exército alemão.
Falecer. Finar-se. Bater as botas. Extinguir-se. Ir-se. Perecer. Sucumbir. Ir desta para melhor. Expirar-se. Morrer.
O Cinema é feito de quem está vivo, mas também de quem não chega aos créditos finais. Todavia, e como tudo na vida, há maneiras e maneiras de morrer. E já que é para não chegar até à linha final, mais vale ir de uma maneira... espetacular!
Mais uma voltinha no carrossel das produções da família Oliveira.
Depois de termos criado com pouco afinco e numa única tarde a nossa própria versão familiar do "Home Alone", decidimos subir a parada, os valores de produção e a insanidade mental.
DIÁLOGO ESPIRITUOSO E CITAÇÕES PARA GUIAR A VIDA
Resumindo e concluindo: porque é que gosto tanto de indies? Porque não têm um orçamento milionário e não apresentam a possibilidade primária e direta de encher o bolso ninguém. Porque são filmes feitos pelo poder explosivo do talento cru e pela satisfação inexplicável de criar algo duradouro. No fundo, porque são filmes feitos pela alegria e pelo amor de fazer filmes.
Hoje Ben Affleck tem tudo: a mulher, o carro, as jóias e a casa - desculpem, mas assaltou-me subitamente a música da Ágata... Além disso é um ator respeitado (ainda que não especialmente engenhoso), um realizador galardoado e, o mais importante de tudo, o novo Batman.
Ora, mas para alguém chegar a Batman tem de ralar muito nesta vida, e o tio Ben não se acanhou quando teve de o fazer para vingar num difícil início de carreira nos anos 80. Depois de pouco promissoras participações em séries e telefilmes, o Ben teve aquele que considero (mas devo ser a única!) o seu verdadeiro breakthrough: um fabulástico anúncio da Burger King onde prova ter a confiança para ser um portentoso super-herói.
Afinal, ele é um herói que quebra as regras.
"Quem diz que o tempo apaga as mágoas nunca amou como eu"
Pilar vive os seus primeiros anos de reforma a tentar endireitar o mundo e a lidar com as culpas dos outros, tarefa cada vez mais frustrante nos dias que correm. Participa em vigílias pela paz, colabora em grupos católicos de intervenção social, quer acolher em casa jovens polacas que vêm a Lisboa para participarem num encontro ecuménico e inquieta-se sobretudo com a solidão da sua vizinha Aurora, uma octogenária temperamental e excêntrica, que foge para o casino se tiver dinheiro com ela, fala constantemente da filha que não parece querer vê-la, ressaca antidepressivos e desconfia que a sua criada cabo-verdiana, Santa, dirigindo contra ela práticas malévolas de vudu. De Santa quase nada sabemos, é de poucas palavras, executa ordens e acha que cada um deve meter-se na sua própria vida. Aurora fará um misterioso pedido e as outras duas unem-se para o tentar cumprir: a tarefa requer encontrar um homem, Gianluca Ventura, que até àquele momento ninguém sabia que existia.
Ventura tem um pacto secreto com Aurora e uma história por contar. Libertando finalmente um segredo que é tanto seu como da sua nação – ensombrada pelos desequilíbrios do colonialismo Português – Ventura faz um relato enterrado há mais de cinquenta anos que começa assim: “Aurora tinha uma fazenda em África no sopé do monte Tabu...”.
Vencedor do Sophia de Melhor Filme (os “nossos Óscares”, que começaram a ser entregues no ano passado), o drama visceralmente lírico e sofisticado de Miguel Gomes é concomitantemente um trabalho profundamente original e autêntico no enquadramento da indústria nacional e internacional, mas também (e sobretudo) uma íntima e extensa homenagem à história do Cinema – tomando particular inspiração no clássico homónimo de F.W. Murnau, de 1931.
Monocromático, com passagens essencialmente silenciosas conduzidas pelas palavras de um narrador, “Tabu” é dividido em dois capítulos – “Paraíso Perdido”, com uma abordagem mais paciente e referente às ações passadas em Lisboa, e “Paraíso”, mais expedito e brincalhão com as convenções cinematográficas, localizado em África – e embarca em inúmeros riscos estéticos e narrativos para emergir como um testamento vivo às habilidades do realizador e da coargumentista Mariana Ricardo. Nenhum outro risco é, todavia, tão avultado como a consciente decisão de confiar na inteligência e paciência da audiência para deslindar a sua própria interpretação deste enigmático pedaço de éden cinematográfico.
A primeira estrofe é inequivocamente mais laboriosa e difícil de manter o investimento. É perigoso deprimir tanto a audiência logo à entrada, mas a verdade é que é esta experiência que invoca a nossa diligência é absolutamente necessária para a total imersão na segunda parte.
De todo o modo, cada uma das partes é inseparável da outra, partilhando canções (incluindo clássicos pop inapagáveis como “Be My Baby” e “Love is Strange”), simbolismos, linhas de diálogo e feridas abertas que se unificam numa espécie de truque de magia inesperado.
Explorando o desejo interior humano de encontrar o seu próprio paraíso, Gomes faz uso de temas potentes como o colonialismo, o racismo, a memória, a infidelidade e o poder socialmente destrutivo do amor proibido para ativar as nossas emoções de uma forma que podemos não compreender à partida, mas que sentimos de uma forma devastadoramente bela.
Mas dicotomicamente, “Tabu” não parece surgir como um filme estritamente artístico, e por isso inacessível à grande maioria do público. Ao contrário – são as suas amarras às emoções mais básicas da natureza humana que o tornam um objeto tão relacionável e significativo, mesmo que contado como uma sensibilidade tão excêntrica.
A própria artificialidade no processo de storytelling é usada como uma ferramenta para convir melhor a verdade do epicentro emocional da história. É uma visão provocadora, e poucos filmes são inteligentes o suficiente para incorporar as suas aspirações alegóricas em narrativas diretas.
“Tabu” é, verdadeiramente, uma experiência transcendente que nos assombra por dias, meses, vidas. Em última instância, é uma das maiores e mais excêntricas histórias de Amor do nosso tempo.
Quanto a Aurora e Ventura - como Romeu e Julieta - o coração, o mais insolente músculo de toda a anatomia, guardá-los-á para sempre.
9.5/10