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(atenção este artigo pode conter SPOILERS para os leitores que não tenham visto alguma versão do filme, lido o livro ou visto o espetáculo musical em palco)
Desta vez não é propriamente um desabafo, mas a partilha da minha felicidade perante uma escolha criativa.
"Les Misérables" estreou apenas há dois dias no nosso país, e já teve o poder de deixar a audiência dividida. Uns ficaram apaixonados, outros nem por isso, mas não é disso que hoje vamos aqui falar hoje, porque já me estiquem que chegue e sobre na crítica alargada que escrevi ao filme (quem não leu, está aqui).
Mas todavia, além dos gostos e uns e desgostos de outros, existem pontos que são de apreciação quase, quase consensual (porque nada o consegue alguma vez ser a 100% nestas lides). A fabulosa interpretação secundária de Anne Hathaway de Fantine, a malograda mulher que vê a sua vida destruída enquanto o interior se lhe desespera pela impossibilidade de ajudar mais a filha (que se supõe doente), Cosette.
Tive pena que o filme só se debruçasse sobre ela durante apenas meia hora, ou coisa do género, mas de facto, a menos que o filme fosse focado na sua personagem, era difícil dar-lhe mais tempo de antena tendo em conta a dimensão da restante história. De todo o modo, e para os curiosos, saibam que Victor Hugo escreveu "Os Miseráveis" na forma de cinco livros, escritos e lançados separadamente (hoje existem nessa forma, mas há sempre mais acessível a compilação dos cinco, que é um calhamaço grandão de 1200 páginas). O primeiro chama-se "Fantine", e cobre a história desde a soltura de Jean Valjean (elaborando um pouco sobre a sua vida antes de ser preso), até à morte de Fantine. Como é natural, e apesar de conter muitas outras histórias adicionais, "Fantine" conta a história mais detalhada da personagem titular, incluíndo a história de amor que viria a originar Cosette, e o encontro com os Thénardier.
Enfim, isto só para os curiosos que desejassem saber o que mais podiam encontrar no livro sobre este ponto particular (e desde já recomendo a leitura a super bold, tem uma linguagem bastante acessível, e apesar de o tamanho não ser dos mais apelativos, vale inteiramente a pena, claro, não só pela história épica, mas pela atenção dada por Victor Hugo ao detalhe, e em fornecer a visão mais completa sobre o mundo das suas personagens).
Mas voltando a Anne Hathaway... é curioso recordar que ela e Hugh Jackman já tinham cantado juntos há tempos, quando ele aceitou a hercúlea e nem sempre generosa tarefa de apresentar a cerimónia dos Oscars, aqui há uns aninhos. Nessa cerimónia, e entre outras coisas, Jackman cantou o famoso medley dedicado aos nomeados a Melhor Filme do ano, e a certa altura, desafiou Hathaway a subir ao palco para o acompanhar no momento divertido.
(o vídeo do medley está completo, mas a parte referida começa à volta dos 4:00)
Ora foi o próprio Jackman, que depois de selecionado para protagonizar o novo filme de Tom Hooper, sugeriu Hathaway para o papel de Fantine. Isto não livrou Hathaway do moroso processo de casting até ser eventualmente escolhida - ao que parece, nomes como Amy Adams, Marion Cotillard, Kate Winslet e Rebecca Hall foram considerados.
Entretanto, Hathaway chegou, viu e venceu e ofereceu-nos aquela que já é conhecida como "a performance que lhe deverá valer o cobiçado Oscar da Academia". A meu ver, e contando apenas com os titulos que vi até ao momento, inteiramente merecido. Chega-se inclusive a dizer, que Hathaway só precisou de menos de 5 minutos para ganhar o galardão - nada menos que a duração do mais emocional, poderoso e famoso solo do musical, "I Dreamed a Dream".
E é o referido solo que me faz chegar ao ponto que queria hoje aqui fazer passar. Estou feliz com a escolha de Tom Hooper.
Não falo da escolha mais primária de Anne HAthaway - com essa estou radiante! - mas falo das escolhas criativas que envolveram o tratamento da cena em questão. Nunca pensei poder dizer isto, mas depois de assistir ao filme duas vezes, fiquei fã do método de filmagem sem cortes e aproximado, que, colocando-a contra um fundo negro vazio, nos permite focar em nada mais que a emoção da personagem durante aqueles minutos.
A escolha no entanto não fica por ai. Parece-me estranho não notar tanta gente a falar do assunto, talvez até porque não achem importante, muitos porque se calhar nem repararam. Mas a verdade é que o primeiro trailer, o primeiro de todos a surgir nos ofereceu uma versão da música completamente diferente da que a que acabámos por ouvir no filme. Mais limpa, mais afinada e com mais musicalidade. Mas com a emoção quase totalmente sugada.
Li por aí que Anne Hathaway insistiu em fazer 20 takes da cena, apesar de Hooper lhe dizer que tinha conseguido o perfeito apenas à quarta tentativa. A versão que ouvimos no primeiro trailer será, por ventura, uma das outras 19, mas é, pelo menos para mim, a resiliente prova de que a escolha final, apesar de, provavelmente (porque eu não percebo assim tanto de música), musicalmente menor, menos afinada ou mesmo reconhecível, foi a mais poderosa, verdadeira e, derradeiramente, a única escolha possível tendo em conta... bom, toda a desgraça do arco de Fantine.
Porque esta foi uma mulher que perdeu tudo, que se encontra desfeita, fisica e emocionalmente, sem ninguém no mundo, e sem forma de chegar à única pessoa que poderia ser o seu alguém, a filha. Perdoem-me se estou a interpretar alguma coisa mal, mas não consigo imaginar esta pessoa a cantar de outra forma que não a apresentada por Hathaway no corte final do filme. Porque nunca a dor e o sofrimento infligidos a Fantine lhe permitiriam uma versão glamourosa e perfeita da canção - mesmo sim, tratando-se de um musical, porque este, talvez acima das canções, deve convir acima de tudo emoções e verdades, tal como qualquer outra obra de arte. Porque se fecharmos os olhos, a própria interpretação de Hathaway conta a restante história de Fantine que o filme, por vários constrangimentos, não nos pode oferecer.
E essa foi a melhor prenda de todas.
(a versão do 1º trailer, mais clean e musical)