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Não quero começar este artigo sem dizer que não sou a maior fã do mundo das adaptações cinematográficas de B.D. em geral, e também que antes de assistir a The Amazing Spider-Man eu era como muitos de vós: 100% contra um filme que não precisava de existir apenas cinco anos depois de Spider-Man 3.
Mas mesmo contra todos os amplificados impropérios chegou até nós um título que recusou avidamente o título de remake para se autointitular de reboot e infundir nova vida e um diferente percurso na história cinematográfica de Peter Parker.
Renitente, muito renitente, lá me arrastei para a sala de cinema, apenas para no final sair de lá o mais perto de maravilhada que um filme sobre super-heróis me pode deixar. Hoje escrevo-vos este texto para explicar sucintamente porquê, e expor-vos apenas algumas das razões que sustentam a minha opinião de que esta tem o potencial de ser uma das mais capazes e competentes sagas blockbuster da década.
NOTA: Este artigo não pretende discutir se esta é uma versão mais bem conseguida do que a iniciada por Sam Raimi em 2002, ainda que, em momentos, faça uso de algumas comparações por facilidade de contextualização.
1. Um protagonista dedicado
Este ponto tem obrigatoriamente de ser iniciado expondo a pouca simpatia que tive pela interpretação de Tobey Maguire. Não tenho nada contra o moço, mas a verdade é que às vezes os trajeitos do rapaz me irritavam ativamente, pelo que nunca foi um Homem-Aranha que me custasse perder o contacto. Posto isto que, até admito seja o ponto que mais discussão possa gerar por ser absolutamente subjetivo, penso que talvez seja difícil encontrar na história das adaptações cinematográficas de personagens adorados da banda-desenhada algum ator que se tenha entregue de forma mais apaixonada à personagem em que se dissolveu do que Andrew Garfield, o nosso novo Spidey. Garfield viveu o sonho de menino (não o do Tony Carreira, mas o de muitos outros meninos potencialmente mais fixes do que o Tony) de um dia poder entrar na pele do seu ídolo, e isso fez-se transparecer em cada segundo à frente da câmara. Se de mais provas precisávamos, basta relembrar o célebre momento no Comic Con de 2011, onde Garfield foi o protagonista de um autêntico manifesto ao ícone que é para si o Homem-Aranha.
A acrescentar a isto, também me parece que Garfield tem um alcance de performance que poucos protagonistas do género têm – devemos lembrar-nos que ele se apresenta como um dos atores mais promissores da sua geração, o que foi não só comprovado pela sua interpretação nomeada ao Oscar em The Social Network, mas também outras incursões mais independentes mas portentosas como Never Let Me Go (2010), Red Riding: In the Year of Our Lord 1974 (2009) ou Boy A (2007).
2. Um par romântico com faísca
Perdoem-me a lamechice, mas Andrew Garfield e Emma Stone devem ser um dos pares mais queridos do cinema moderno. E não só isso é uma verdade universal (creio que ninguém se queixará deste ponto pelo menos), como o par tem também uma química descomunal. Ok, podem querer desconsiderar este ponto pelo facto de os protagonistas serem, na vida real, um casal (apaixonaram-se nas gravações), mas a verdade é que para tudo isto funcionar no ecrã é precisa ainda a intervenção de outros talentos, como sejam os argumentistas ou o realizador, e atentemos no caso específico do realizador. Este é nada mais que Marc Webb, um realizador que tinha apenas um crédito no seu currículo de realizador de longas-metragens de cinema: (500) Days of Summer, que foi “só” uma das comédias mais inventivas e aclamadas da década. É preciso argumentar mais?
Além de tudo isto, acrescem ainda quatro questões cruciais: primeiro, Gwen não é uma mera princesa à espera de ser salva – ela é uma jovem mulher segura de si, capaz e uma companheira para Homem-Aranha em todos os sentidos, inclusive tendo-o ajudado em dois ou três momentos cruciais; segundo, este é um romance com razão de ser, e que não dá a sensação de lá estar só porque sim; terceiro, e nas palavras da própria Emma Stone “Gwen falls in love with Peter Parker, and Mary Jane falls in love with Spider-Man, which is a different thing”; quarto, *POTENCIAIS SPOILERS RELATIVOS AOS COMICS* a tragicidade iminente ligada ao par (como poderão saber, Gwen Stacy é eventualmente morta na banda-desenhada) dá-lhe um brilho de “fatídico primeiro amor” muito difícil de superar.
3. Componente visual mais realista
O desejo de Marc Webb de se manter longe do CGI sempre que possível foi respeitado ao máximo das suas possibilidades criativas em The Amazing Spider-Man. Eu, que sou da velha guarda que prefere sempre um ator a um replicado computorizado (apesar de ser manifestamente uma indivídua pró-futuro), aprecio sempre este tipo de decisões. Vic Armstrong coordenou as “acrobacias” entre os atores e duplos, que foi desde a incorporação de Parkour (em muitas alturas levado a cabo pelo próprio Andrew Garfield) à utilização de atores nas famosas cenas de exteriores onde o Homem-Aranha se baloiça pela cidade de Nova Iorque nas suas teias. Muitos destes exemplos podem ser atestados pelo behind the scenes que convosco partilho já abaixo.
4. O respeito pela origem (comic)
Por mais que possa parecer, não sou, nem de perto nem de longe, uma geek da banda desenhada. Confesso até que sei bastante pouco sobre a esmagadora maioria dos heróis que aqui têm origem. Mas por força das repetidas adaptações, ou da forte exposição devida ao mito que encerram em si, creio saber o suficiente sobre três das principais personagens deste universo: Batman, Super-Homem e Homem Aranha.
Sem querer entrar em detalhes que provavelmente não saberia discutir, agradou-me bastante a ideia de que este reboot de Spidey estaria mais intrinsecamente ligado às suas origens da B.D., e para este ponto focar-me-ei num exemplo que, não sendo o único, é um dos mais visíveis.. Se bem se lembram, na saga original de Sam Raimi, quando Peter Parker é mordido por uma aranha radioativa uma componente das habilidades que ganha é incrivelmente preciosa: a de lançar teias a partir dos pulsos. Ora se este caminho foi extremamente eficiente para criar, por exemplo, um mecanismo cómico inesquecível (quem não se lembra da cena memorável onde, no topo de um prédio, Peter Parker ensaia os lançamentos de teias com frases como “up, up and away” ou “shazam!”) ou uma habilidade falível (se recordarmos os momentos em que os poderes de Peter falharam aquando do seu fraquejo psicológico), também foi um facilitismo que acabou por obliterar uma das características mais distintivas de Parker ainda antes de se tornar um super-herói – a sua inteligência extrema.
Neste ponto específico, The Amazing Spider-Man expõe com a maior das clarezas todo o brilhantismo de Peter, que coexiste com a sua natureza reclusa. A sua inteligência (que está patente ao longo de todo o filme) é posta em full-display especialmente no momento em que Peter cria os dispositivos que lançam teias de aranha, inquestionavelmente um dos momentos altos do filme.
5. O respeito pela origem (aranha)
Vou aqui expor uma vez mais o meu paupérrimo conhecimento pelo universo do Homem-Aranha na banda desenhada, mas reforçar este ponto com aquilo que é a minha ideia exclusivamente pessoal. Não sei exatamente como é que o personagem é retratado na B.D. depois de ganhar os seus poderes – se é encorpado ou magro, por exemplo – mas creio que, por questões lógicas nos devemos atentar na origem dos poderes de Peter: uma aranha. O visual que a equipa criativa criou para o Homem-Aranha neste reboot é manifestamente diferente da versão de Tobey Maguire, mais forte e fisicamente intimidante.
O novo Homem-Aranha é, antes de um capaz lutador, um ginasta, o que me parece uma abordagem bastante correta da questão. Os próprios membros parecem alongados – tais como os de uma aranha – e a sensação que dá é que Peter consegue realmente “escorrer” por entre os dedos dos vilões que o perseguem. Parece-me a mim, que em termos de “força bruta”, o Spidey de Tobey Maguire venceria a léguas; mas o que me parece mais lógico é que o Homem-Aranha exista primeiro como um descendente de uma aranha e só depois como um lutador competente. Se repararmos bem, e não fosse pela sua inteligência, engenho e agilidade, talvez o Peter Parker de The Amazing Spider-Man nunca fosse capaz de derrotar o Lizard… A acrescer a este ponto temos ainda a clara preocupação de Andrew Garfield de incorporar "movimentos aracnídeos" no personagem depois da mordida.
6. Os traços cómicos
Quando há alguns meses chegou às mãos do grande público o primeiro trailer oficial de The Amazing Spider-Man, a receção não foi das melhores, especialmente pelo tom que este aparentava carregar. Uma espécie de cruzamento entre Twilight e a negritude da saga Batman de Christopher Nolan estava prestes a despedaçar as esperanças dos fãs que viam neste reboot a oportunidade do ataque sob um novo ângulo à saga do aranhiço. Felizmente, existem trailers enganadores, o que foi o caso, e enquanto se confirma que algo negro paira sobre The Amazing Spider-Man (essencialmente, na sua origem e no mistério que envolve o desaparecimento dos seus pais), a verdade é que o título está cheio de pequenas pérolas que são um atestado ao sentido de humor.
O Homem-Aranha da banda desenhada sempre foi conhecido pelo seu sarcasmo e pilhéria entre teias, pelo que vê-lo em ação a todo o gás em live-action foi, sem dúvida, uma revelação. E enquanto a versão de Raimi também teve os seus bons momentos (essencialmente no primeiro capítulo), a verdade é que o reboot de Marc Webb parece menos forçado e mais subtil nas suas tiradas.
7. Um vilão complexo
O vilão é, inequivocamente, uma das personagens mais interessantes que podemos encontrar na história do Cinema e, quiçá também, na história da Arte. Superando inúmeras vezes em fascínio o herói, o vilão é a roldana que faz o mundo girar, ainda que o direcione, na maior parte das vezes, para o caos. É, contudo, o facilitismo empregue na criação dos vilões e das suas motivações que me leva a desconsiderar tantas vezes o potencial de filmes deste género. Se relembrarmos The Avengers por exemplo, um dos gigantes do ano e que reconheci como boa representação do que o entretenimento puro é, Loki é o típico vilão sub-aproveitado. Com potencialidades imensas, muitos senão quase todos acabam por se mover sob o chavão do desejo do domínio do mundo.
O que me fascinou no “vilão” de The Amazing Spider-Man, além da fantástica interpretação do “inglesérrimo” Rhys Ifans, foi a predisposição dos criadores de criarem um personagem contracorrente, um arqui-inimigo nada cartoonizado cujas motivações se duelam entre o que ele pretende atingir, o que lhe está a acontecer e com a sua mente continuamente perturbada, que se convulsa simultaneamente com a batalha entre o bem e o mal.
8. O cameo de Stan Lee
Em todas as adaptações cinematográficas da Marvel que consigo lembrar, sempre tivemos direito a um pequeno vislumbre de Stan Lee. Não apenas porque o mago da banda desenhada criou alguns dos mais icónicos personagens da história dos super-heróis, mas também porque decidia agraciar cada filme com a graciosidade de um cameo seu.
Sem spoilers, posso apenas dizer-vos que este foi um dos, senão o mais brilhante cameo do escritor norte-americano.
9. A viagem de autodescoberta de Peter
Além da introdução do background sobre os pais de Peter, somos introduzidos à sua vida nos anos de liceu, ao contrário do que aconteceu na versão de Sam Raimi, onde tomámos contacto com o nosso herói já entranhado na vida adulta e no mundo do trabalho. Tendo em conta as questões de identidade que tantas vezes se colocam no personagem, parece-me infinitamente mais adequado que o personagem se situe neste grupo etário, onde questões como esta são tão importantes para o consequente desenvolvimento adulto do indivíduo.
Nesse sentido, parece-me também que é mais fácil para o espectador identificar-se com este Peter Parker, por se rever nas suas lutas interiores que o levam muito para lá do retrato bidimensional que tantas vezes os heróis merecem no cinema: Parker é romântico, inteligente e corajoso, mas também demonstra medo, confusão e malícia.
10. The Untold Story
Vamos esclarecer aqui uma coisa: muita gente se sentiu enganada pelo que a campanha de marketing de The Amazing Spider-Man nos fez acreditar – que era desta que íamos conhecer os seus segredos, a história nunca antes contada… e a verdade, bom a verdade é que foi tudo uma meia-verdade. Enquanto nos foram dadas várias pistas para esta “história de origem” (gostei especialmente da forma como foi muito mais bem explicada a forma como Peter obteve os seus poderes, e as pistas para a ligação entre a aranha mutante e a investigação do pai de Peter), sobraram-nos muito mais perguntas do que respostas, o que não considero que seja algo mau tendo em conta que este está previsto apenas como o primeiro episódio de uma trilogia.
Nesse sentido, creio que The Amazing Spider-Man nos deu bastante para mastigar até ao seu segundo capítulo, com bastantes nuances novas que não tendo sido reveladas na totalidade (ou mesmo algumas intenções) e uma cena pós-créditos que deixam uma ansiedade muito saudável para a sequela.
*** *** ***
É óbvio que o blockbuster de Marc Webb não existe num mundo de rosas e não escrevi este artigo com palas nos olhos.
As falhas existem, estendendo-se desde um argumento por vezes desconexo ou repetitivo, a outras faltas menores. Mas parece-me que, dentro do universo peculiar dos blockbusters, The Amazing Spider-Man tem sido facilmente descartado sem o merecer.
Talvez apenas Christopher Nolan e o seu Batman tenham conseguido equilibrar a balança, mas creio que existam dois caminhos a trilhar muito distintos no género: o dos que apostam na espetacularidade, como The Avengers, e o dos que apostam na ligação com a audiência através da construção cuidada de personagens e das suas motivações, como The Amazing Spider-Man (apesar de ter alguns efeitos muito interessantes, não foram para mim o ponto forte de toda a experiência).
Parece-me, não só por isso mas também, que estamos perante um dos raros casos em que foi construído um filme a partir da dedicação, respeito e paixão por uma causa, ou neste caso, por um ícone de todos de nós e não pela sede de demonstrar as potencialidades tecnológicas do meio ou do último grito da moda de explosivos à lá Michael Bay. E quando assim é a experiência cinematográfica tem um outro significado, e lá voltamos aos sonhos de menino/a (novamente, não os do Tony) e fantasiamos sobre como seria um mundo onde existissem pessoas não só como Spidey, mas também como Peter Parker.