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"I'm not a puppet, I'm an artist"
Uma ave rara, extinta quase poderíamos dizer, chegou às salas de cinema no final de 2011. Mesmo sem chilrear, esta espécie, de plumagem preta e branca, esconde enormes asas de aspecto quase pré-histórico - um pouco assustadoras, devemos dizer. Mas quebrando com tudo aquilo que de mal podíamos agoirar a seu respeito, pairou glamorosa e graciosamente sobre as nossas cabeças, fazendo-nos sonhar com aquilo que um dia foi e hoje, infelizmente, cada vez menos é.
Essa ave exótica dá pelo nome de The Artist.
George Valentin é um galã do cinema mudo – uma estrela no auge de carreira que deixa suspiros quando passa pela rua como quem deixa pegadas quando se passeia pela praia. Um dia o futuro bate à porta, e como a sombra que se esfuma com o raiar do Sol, o Cinema passa a ser ouvido e Valentin vê-se subitamente numa estrada de sentido único; ou fala ou é esquecido.
O que se passa em The Artist é, na verdade e como puderam ver, muito simples. O que aqui temos é um melodrama de backstage, a história da estrela caída que dá lugar a uma proto-estrela, com perspectivas de se tornar a mais brilhante da galáxia.
Este pequeno grande filme francês é, em certa medida, um pastiche; a boa notícia é que não o é de forma cínica. Combina um charme único com o melhor que o Cinema sempre tentou oferecer-nos: o poder da emoção. Doce, divertido e tocante, acena respeitosamente a mais clássicos do que aqueles que podemos contar pelos dedos das mãos e dos pés [as mais flagrantes: Singin' in the Rain (1958) e A Star is Born (1937)] e o coração que bombeia cada mililitro de arte tem tanta paixão como tiveram Chaplin, ou Keaton, ou Lloyd. É prazer cinematográfico na forma mais pura, mas se as referências são claras, é igualmente verdade que se trata de um dos filmes mais frescos e corajosos do ano, talvez mesmo, do jovem século.
Reduzir The Artist a um exercício nostálgico é simplesmente pecaminoso, uma vez que estaríamos a obliterar uma das suas maiores vitórias: o triunfo num mundo altamente pixelizado e regido pelos decibéis de uma explosão ensaiada num set. Norma Desmond, a diva de Sunset Boulevard (1950), dizia que os filmes se tinham tornado pequenos demais para si; e parece uma ironia que tantos deles se tenham de facto tornado mais pequenos no processo de se tornarem maiores.
Mas verdade seja dita, The Artist nunca poderá ser confundido com qualquer um título dos anos 20, seja pela imagem demasiado límpida ou pelos ângulos de câmera manifestamente modernos que utiliza. No entanto, não me quer parecer que o que Hazanavicius desejava era proporcionar uma simples viagem ao baú das películas. O que almejou foi algo muito maior: que uma audiência desabituada ao que uma vez foi o seu pão de cada dia, volte a olhar (com olhos de ver) para os primórdios desta Arte, deixando-se abstrair das limitações que há 90 anos pareciam apenas um ponto no futuro distante.
O Cinema mudo conta histórias com o artifício único da visão, e Hazanavicius teve ainda a sorte de encontrar dois actores que compreendem isso de forma natural. Bérénice Bejo é pura alegria com momentos de sobriedade, arranjando ainda espaço para, numa ocasião inventiva, nos oferecer um exercício de pantomima esplendoroso e tocante. E Jean Dujardin… bom, é o charme empessoado numa figura de bigode desenhado a lápis de carvão. Um actor físico notável, mas também um excelente espécime dramático.
O seu George Valentin é, como a nossa querida Norma Desmond, uma vítima da mudança. "We didn't need dialogue. We had faces", dizia ela com mágoa. Mas George é ainda mais revolto a esta mudança de paradigma: “I won’t talk!” diz um dos seus personagens; e esta é uma ressonância que vamos reencontrando ao logo de todo o filme.
Se tiver mesmo de me queixar, a querela dirige-se inveriavelmente ao último terço da narrativa que se sente um pouco arrastado – a queda dramática de Valentin é demasiado friccionada. O filme não é propriamente longo - nem chega a ter 100 minutos - mas o ritmo, especialmente nos momentos menos... exuberantes, digamos, é perigosamente lento. Ainda assim, e no final, o saldo é milionário.
Parece-me que o destino reserva muitos Oscars para The Artist, e ao mesmo tempo que este é talvez o título mais trivial do ano, é também um dos mais singulares e especiais, sendo simplesmente impossível negar aquilo que acaba por despertar em nós.
The Artist é uma lição de renovação não só literalmente, através do arco do protagonista, mas também num plano latente, onde restaura a crença de que uma história simples, bem contada e sem artifícios robóticos pode de facto existir no século XXI.
A certa altura, Peppy afirma gloriosamente numa entrevista “Make way for the young!”.
E porque às vezes, ao celebrar o velho, sentimo-nos revigoradamente novos, e Michel Hazanavicius escreve o mais belo poema de S. Valentim ao Cinema clássico, que não sendo perfeito, chega para fazer qualquer amante desta sétima Arte sair da sala com um enorme sorriso na cara, reescrevo-o eu: “Make way for the old !”.
9/10