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“Do you think they know we're on our way, bringing them the plague?”
Como falava com um bom amigo antes de as luzes se apagarem e a sessão começar, é manifestamente verdade que o Cronenberg do século XXI é um pouco diferente do Cronenberg do século XX. Os filmes crípticos e metafóricos deram lugar a histórias mais terra-a-terra, ainda que sempre mantivessem o cunho muito pessoal do realizador.
Talvez a entrada nos 60 tenha despertado em Cronenberg um maior desejo de chegar a uma audiência mais vasta, talvez a pressão de Hollywood o tenha feito ceder a um registo mais mainstream… Ou então nem é nada disso, e como o próprio admitiu descomplexadamente no LEFF 2011 no passado Domingo, faz os filmes que lhe apetece e, desta vez, quis mergulhar no mundo da psicanálise, das pulsões e da sexualidade humana da forma mais directa possível – trazendo à vida os homens que quiseram olhar para lá da ponta do iceberg.
Baseado na peça “The Talking Cure” de Christopher Hampton, A Dangerous Method acompanha a relação tumultuosa entre os dois titãs da Psicologia, Sigmund Freud e Carl Jung. Convencional demais para David Cronenberg? Meta-se então ao barulho Sabina Spielrein, uma paciente de Jung que deu que falar e que acabaria por se tornar numa das primeiras psicanalistas da história.
Vale a pena aqui esclarecer: os adeptos de Cronenberg ficarão com um sabor amargo. Não porque este seja um filme mau – o que não é, de todo. Mas é um filme um pouco impessoal numa carreira tão pautada por toques pouco convencionais como a do realizador canadiano. O que ao mesmo tempo deveria ser esperado, dado a natureza realista e histórica da peça.
De Videodrome a Crash, não esquecendo, claro, Dead Ringers, Cronenberg cobriu de várias perspectivas os mistérios do corpo humano e os seus instintos mais básicos. E ao pé de visões tão pessoais, A Dangerous Method poderá parecer um filme frio, e que como os seus protagonistas, analisa o seu tema de um ponto de vista (quase) exclusivamente clínico. Mesmo quando versa sobre a perversidade sexual e a doença mental, é um drama contido e elegante guiado essencialmente por personagens, ideias e palavras. O argumento não quer tomar uma posição em detrimento de outra, mas ao invés disso mostrar-nos como também estes dois génios com falhas e defeitos que viriam a moldar profundamente os ideais que defenderam.
Mas apesar da mudança com o passar do século, e como vimos em A History of Violence e Eastern Promises, também aqui aparecem uns laivos do “velho” Cronenberg, e aqui tomarei invariavelmente por exemplo a marca sangrenta no lençol que sucede o encontro sexual de Jung e Spielrein.
Para quem conhece a filmografia de David Cronenberg e alguns dos temas recorrentes que surgem na mesma – a sexualidade, a metamorfose, a dualidade humana – não é surpresa nenhuma ver o nome do realizador no topo do poster de A Dangerous Method. A oportunidade parecia perfeita. Mas aqui fica-nos a faltar alguma coisa. Aquele ingrediente secreto que faria toda a diferença.
Estranhamente, peca pela falta do espírito real Cronenberguiano. Deveria ser um nadinha mais longo (o final é até abrupto), bastante mais profundo, mas sobretudo mais controverso. O argumento de Hampton acaba por ser, julgo eu, o maior culpado, oferecendo um melodrama fácil de digerir (e infelizmente, de esquecer), e que perde gás a meio do caminho. Mas não mandem o homem à forca: as histórias paralelas, no fundo, os dois romances (Jung/Spielrein e Jung/Freud), são eficientemente complementares
A Dangerous Method é, por necessidade própria, um filme que se rege pela palavra. Um pouco simplista por vezes, parece-me, mas pelo menos é claro em argumentação. Filmando em muitos dos locais onde a acção verdadeira ocorreu, desde a casa de Freud em Viena até ao Hospital Burgholzli em Zurique, Cronenberg ainda assim emprega um formalismo refinado com movimentos de câmera a alterar constantemente a dinâmica dos elementos dominador e dominado.
As interpretações trazem consenso e desacordo.
O consenso serve para Michael Fassbender e Viggo Mortensen nos seus retratos de Jung e Freud. O primeiro dá enorme profundidade aos conflitos de Jung, enquanto o segundo nos oferece um retrato singularmente divertido e imperioso de uma das personalidades mais determinantes de sempre da Psicologia. Os seus debates juntos são fascinantes e os detalhes fazem sem dúvida a diferença, num momento em que recordo com um sorriso o momento em que o professor corrige o pupilo relativamente ao nome da sua teoria.
Por outro lado temos Keira Knightley, cuja histeria inicial (que me fez recear que a moça deslocasse o maxilar duas ou três vezes) poderá afastar alguns da verdadeira essência do seu trabalho aqui, e que se revela, curiosamente, à medida que Spielrein fica mais lúcida. É verdade, a figura inicial é algo caricaturada e a actriz talvez tenha ultrapassado um pouco a linha do verosímil, mas o controle regressa ao seu domínio e a performance molda-se em algo sentido e realmente impressionante.
Vale ainda a pena fazer referência ao papel curto mas delicioso de Vincent Cassel como o promíscuo Otto Gross, um autêntico diabo a pairar à volta de Jung.
A atenção ao pormenor técnico é minuciosa e imensamente recompensadora para o espectador. Desde os acordes graves e intensos dirigidos pelo mestre Howard Shore, à fotografia imaculada de Peter Suschitzky ao guarda-roupa de Denise Cronenberg e à direcção artística de vários talentos internacionais.
É um filme visualmente belo e estimulante, marcado por boas performances e a discussão de ideais provocadores e não tanto por ser marcadamente negra e contorcida como trabalhos anteriores (e originais) de David Cronenberg. Parece-se, contudo, demasiado com uma peça de teatro. Não me parece que tenha grande futuro na awards season, à excepção da fotografia, banda sonora original e uma ou outra menção às interpretações dos actores.
Resumindo e concluindo, e já agora perdoem-me a expressão, não esperem um elaborado mind-fuck ou um filme de culto para a posteridade. É competente, elegante e de temas poderosos, mas a designação simplista de “um dos dramas do ano” terá de chegar para descrever A Dangerous Method, o que afinal, nem é dizer tanto assim…
8.0/10