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"Lisbeth Salander tem a sua própria percepção confusa do mundo."
(tradução do original sueco)
Depois de ter sido baleada três vezes – na cabeça, na anca e no braço – Lisbeth recupera lentamente no hospital de Gotemburgo. Alguns quartos ao lado e também em recuperação está o seu pai, Zalachenko. Enquanto isto, o jornalista da Millenum Mikael Blomqvist organiza um artigo de exposição relativo à “Secção” que o coloca e a todos os colegas em perigo.
Continuando a infeliz tendência observada em A Rapariga que Sonhava com Uma Lata de Gasolina e Um Fósforo, este terceiro e último episódio - com tradução portuguesa de A Rainha no Palácio das Correntes de Ar - conduz a saga por um caminho não menos interessante, mas talvez menos atraente que os episódios precedentes. É verdade, é quase injusto um filme ter de seguir o brilhante primeiro episódio, mas a verdade é que o termo de comparação nunca desaparece.
E o maior problema deste terceiro Millenium é a falta de algo que viemos a desejar cada vez mais: a presença da inigualável protagonista Lisbeth Salander. Os dois primeiros filmes tornaram Salander numa das personagens mais icónicas da ficção moderna, muito graças à interpretação irrepreensível de Noomi Rapace, e depois de duas aventuras frenéticas que nos viciaram nesta personalidade peculiar e anti-heróica, tiram-nos violentamente o aditivo viciante. Aqui, presa entre hospitais e prisões, Lisbeth só dá um ar de sua graça mais para o final, e nas restantes duas horas parece ser Mikael Blomqvist – um infinitamente menos carismático e talentoso Michael Nykvist – o nosso herói durante muito tempo.
Apesar de tudo, e felizmente, a aura de Lisbeth continua a ser o núcleo do filme, conforme visitamos os confins da sua vida perturbada. Diminuída no hospital, não demoramos a vê-la crescer mais e mais, até reaparecer em todo o esplendor em tribunal, com um mohawk punk, coberta de maquilhagem preta e piercings e correntes, como uma rainha do sub-mundo.
Mas é uma injustiça enorme apontar 3 como a ovelha negra da família Millenium – afinal, é um episódio de natureza diferente dos anteriores, apesar de manter muitos dos mesmos temas, é essencialmente uma história de conspiração e exposição, onde a paranóia impera junto do bem e do mal e onde passamos muito tempo numa sala de julgamento. O enredo requer que, além de um thriller, este episódio seja também um drama jurídico, sendo, deve dizer-se, uma janela que reflecte de forma muito exacta o sistema sueco.
O ritmo é mais lento e vemos um outro lado de Lisbeth. Contudo, este abrandamento é essencial para reunir (quase) todos os elementos deste enredo complexo e dar o final não triunfante mas merecido a esta anti-heroína cativante.
É uma história com algo poderoso a dizer - e que não deixa que a calem - e que mostra que até as sociedades mais desenvolvidas e iluminadas, têm os seus monstros negros e corrupções internas. Uma história que se alimenta da necessidade de transparência e do reconhecimento da violência extrema sob a sombra dos eventos nórdicos inacreditáveis do Wikileaks e dos massacres recentes. Os vilões são-no sem serem caricaturados, o que é não só importante a nível de realismo e proximidade, mas também para nos dar algo que pensar – afinal, os homens que lideram são velhos e estão a um passo da morte. Aqui vale a pena ainda prezar a interpretação de Anders Ahlbom como o odiável Peter Teleborian – sem dúvida um vilão (quase) à altura de Salander.
E assim termina a saga de Salander: uma heroína complexa, cujas simpatia e empatia que sentimos andam na corda bamba, mas sem nunca cair penhasco abaixo. Afinal ela magoa as pessoas, está emocionalmente num caco e é imprevisível. Mas ainda assim notamos a sua vulnerabilidade e intensidade, e acima de tudo, a sua resiliência. Lisbeth Salander é uma das heroínas mais incomuns da ficção moderna, e também a mais icónica e inesquecível, e resta-nos apenas esperar que esta saga sueca, que até começou por ser uma mini-série televisiva, continue a fazer sucesso por todo o mundo e que nunca mais seja recordada de ânimo leve.
7.5/10