Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"How am I supposed to heal if I can't... feel time?"
Lembramo-nos realmente do que pensamos lembrar? Quanto embelezamento posterior suporta uma memória? Como podemos ter certeza de uma memória?
A palavra memória deriva como tantas outras palavras do Latim e diz respeito à capacidade de registar, armazenas e manipular informação – ideias, imagens, expressões, conhecimento – a partir de experiências pessoais. Não existindo uma forma de armazenamento mental, como seria possível viver? Faríamos tudo sempre igual com a mesma surpresa à milésima vez do que à primeira?
Leonard Shelby acorda todos os dias com a mesma memória. Uma imagem feliz da mulher que é distorcida e esborratada pela última lembrança que possui; a violação e morte da mulher que amou. Há quanto tempo isso aconteceu? Não sabe, não recorda. O que sabe é que o homem que o fez sentirá o sabor da vingança.
O quarto onde agora mora está coberto de anotações e fotografias escritas. No espelho reflete-se um homem com o corpo repleto de escritos que parecem relembrar pistas para alguma coisa...Retirado do trabalho de detective desde o incidente, Leonard sofre de uma variação de amnésia desde o incidente que o impede de reter memórias a curto-prazo.
Esta peculiar situação do protagonista reveste várias formas e objectivos chegando até a apresentar-se como uma espécie de comic relief para aliviar a tensão (recordo o genial momento em que Leonard foge desenfreadamente por um parque de roulotes e, derepente, esquece-se porque o está a fazer, não sabendo se está a perseguir ou ser perseguido).
Repetidamente apresenta-se e explica o seu problema ao dono do motel que habita e a duas personagens recorrentes que nem nós sabemos se são conhecidas, amigas ou impostoras: Natalie, uma mulher que o pode ter ajudado e/ou manipulado, e Teddy um estranhíssimo mas dedicado amigo que poderá ser um traficante ou um polícia. Numa jornada inquietante e de tirar o fôlego seguimos a desconstruída história de Leonard na perseguição do Homem que matou a sua mulher. Parece cliché? Experimentem a imaginar a história...a andar para trás.
Christopher Nolan utiliza em Memento um formato que não sendo totalmente original serve generosamente vários propósitos. Ao contar a história do fim para o princípio, Nolan transporta-nos para a cabeça de Leonard, e durante quase duas horas temos uma pequena amostra do desvario e desorientação da cabeça do protagonista. Ao mesmo tempo, Nolan consegue tornar uma história banal num símbolo cinematográfico e agarrar o espectador do início ao fim (ou será do fim ao início?).
Mas se Nolan foi o grande maestro de uma orquestra doentiamente sintonizada, Guy Pearce, o nosso protagonista é sem dúvida a estrela no seu solo. Dinâmico e curiosamente tocante (já que o personagem não apresenta arco de desenvolvimento psicológico) Pearce ajuda a tornar esta diabólica jornada numa experiência surreal e postivamente estranha para o espectador.
Memento tem uma característica única da desorientação. É um puzzle invertido que se completa com o desencaixar das peças; isto se alguma vez se completa realmente.
Os filmes que não se limitam a dar sempre me atraíram, e se são fãs de filmes que vos obrigam a beber cada segundo de fita, Memento é um dos melhores exmplares. Olhem para o relógio para ver as horas e poderão perder uma pista crucial.
Ao mesmo tempo que rebobinamos a vida de Leonard somos presenteados com algumas sequências estranhas a preto e branco que reportam aos seus dias de investigador activo e que se vêem a provar absolutamente essenciais na imagem final que se nos apresenta.
Quem diria que um filme cujo final é conhecido poucos segundos depois de se ter iniciado poderia ser tão electrizante, misterioso e claustrofóbico. A desconstrução do tempo é sublime e nunca arbitrária. Se tivesse algum tipo de ambição neste campo, Memento seria o tipo de filme que eu gostaria de ter escrito ou idealizado.
É claro que não é desprovido de falhas. Uma questão gritante fez-me, de certa forma, confusão ao longo de toda a fita ... se a última coisa que Leonard recordava era a mulher, como era possível lembrar-se que tinha um problema de memória? Afinal não tinha isso apontado em lado nenhum... De qualquer forma e apesar de me incomodar, há certos argumentos que, pela sua complexidade impedem questões lógicas como estas.
Os últimos minutos trazem revelações surpreendentes e que ilustram não só a natureza do problema de Leonard como também a sua própria natureza enquanto ser humano.
Emergem questões sobre a verdade e a mentira e a máscara de felicidade que tantas vezes insistimos em usar, cobrindo os nossos medos e angústias e no caso de Leonard, os seus demónios. E a ambiguidade que se instala nos derradeiros momentos é, contrariamente ao que possam pensar, necessária e o grande objectivo. Deitados na cama à noite começamos também a recordar o que lembramos e a dar-nos conta que, se calhar, tal como Leonard nenhum de nós compreende totalmente o filme da sua vida.
"My wife deserves revenge, whether I know about it or not"
9/10