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"I will do what needs to be done, though I'm damned to Hell! You should understand that, or you will mistake me."
Estamos no ano de 1964 e o carismático e optimista Padre Flynn tenta a todo o custo alterar as políticas rígidas e anti-progressivas da escola de St. Nicholas (Bronx) ferozmente dirigida pela Irmã Aloysius Beauvier. Esta é uma crente inamovível na disciplina, especialmente pelo medo. A mudança ronda St Nicholas; de facto, o primeiro aluno afro-americano acaba de ser admitido - Donald Miller.
Mas os ventos modernos do novo-amado Padre não são as únicas coisas que preocupam a fria Irmã Aloysius: uma jovem e inocente freira confessa à directora que o Padre e o jovem Donald têm passado demasiado tempo juntos em suspeitas visitas “privadas” à reitoria.
Começa então a incessante batalha entre uma freira e um Padre; uma batalha pela verdade, pela fé, pela vontade e pelas dúvidas que ameaçará como nunca destruir a comunidade.
O que primeiro salta à vista num filme como Doubt, é que estamos perante um autêntico banquete de interpretações. Se Kate Winslet não merecesse há muito a sua primeira estatueta, a minha preferência iria inevitavelmente para um dos pólos dos protagonistas de Doubt: Meryl Streep, e seria este o seu 3º Oscar. Que enormidade! Parece que tudo o que faz acaba em nomeação para uma cangalhada de prémios o que não é para admirar; com 15 (!) nomeações ao longo da carreira, Streep tem o dom, o talento e, especialmente, a humildade de, a cada personagem, gastar todo o tempo necessário para a conhecer e compreender.
Cada “retrato” seu sai a cores tão vivas que é quase impossível não os tomarmos por reiais: linguagem corporal, trajeitos, sotaques, maneirismo…tudo minuciosamente estudado, incorporado e derradeiramente, vivido ao máximo. Inesquecível e imperdível. Apesar do seu modesto discurso em contrário, a melhor actriz viva? É bem possível que sim.
Do lado oposto temos Philip Seymour Hoffman, curiosamente, talvez um dos poucos actores de hoje que conseguem manter o ritmo alucinante de Streep. O seu padre Flynn, podendo não o parecer, é uma personagem extremamente complexa, e Hoffman constrói-o confiante e todo ele cheio de compaixão, mas ao mesmo tempo, com um tom incerto que nos faz sempre acabar por…duvidar.
Amy Adams é menos fulgorante (já que o seu papel também assim o exige), mas nem por isso apresenta qualquer défice de qualidade. Antes pelo contrário. Viola Davis é a última peça chave neste poderoso losango representando a mãe de David, e presenteia-nos com uma prestação que, apesar de pessoalmente considerar um pouco sobrevalorizada, é sem dúvida muito reveladora e tocante.
Apesar de ter sido muito de meu agrado, Doubt não conseguiu impressionar-me. Esperava algo realmente explosivo, e o que vi foi algo “apenas” bom. Talvez Shanley tenha optado por adaptações que não deram tanto a ganhar como podiam; o drama foi em certos momentos esticado a pontos de quase-quebra, e o literalismo das metáforas (a cena do gato e do rato por exemplo) e dos tempos vindouros catastróficos (personificados nas ventanias e tempestades ao longo da acção) pareceram-me um pouco exagerados e pouco adequados à seriedade do filme. Num teatro elementos como estes ou como outros seriam a jóia da coroa; mas muitas vezes, os dons do teatro são as quedas do cinema. Fiquei realmente incomodada e com pena; Doubt tinha a total capacidade de ser para mim o grande filme do ano.
Todavia, é absolutamente redutor considerar Doubt apenas e só marcado positivamente pelas grandes performances; é um filme de importância e relevância extremas; algo que talvez daqui a alguns anos se venha a notar com mais clareza.
Doubt não é de forma alguma um ensaio sobre a pedofilia ou sobre a igreja “castradora”. De facto o tema a que respeita está escarrapachado no próprio título: Dúvida. O conflito entre a Irmã e o Padre não é um conflito de classes ou sexos ou escandalos; é uma guerra entre a mudança e a estabilidade, a rigidez e a abertura à novidade e que aborda a presença da dúvida num mundo de certezas. Shanley não quer que ninguém saia das salas com certezas, e, francamente, alguém o conseguiu fazer?
É impossível deduzir a partir do artificioso texto ou da excelente interpretação de Hoffman se realmente o Padre Flynn é culpado ou não; ou sequer de quê exactamente é ele susceptível de acusação. Doubt é um daqueles filmes raros que não se limita a contar uma história e a pintar-lhe um final directo; aqui nós mesmos construímos a história, e o final é um nevoeiro incerto e inultrapassável. Afinal o que é certo aqui?
Lida com pormenores subtis, questiona a fé e salienta a importância de uma abordagem cuidadosa em contraste com uma de certezas dogmáticas. Não é um filme descartável ou facilmente digerível acompanhando-nos por horas, dias, semanas.
Uma experiência extenuante tanto a nível emocional como intelectual. Nesse campo, Doubt é brilhante.
"Doubt can be a bond as powerful and sustaining as certainty. When you are lost, you are not alone"
8.5/10