
"Remember, remember the 5th of November. The gunpowder, treason, and plot. I know of no reason why the gunpowder treason should ever be forgot."
Inglaterra, início do séc XVII
Depois da rainha Elizabeth I falecer em 1603, os católicos ingleses viam alguma luz ao fundo do túnel quanto ao seu sucessor, James I. Todavia, e para seu infortúnio, James não era mais tolerante do que Elizabeth. A partir daí, 13 homens decidiram tentar mudar o rumo da história da Inglaterra através de uma violência explosiva que acabou por sair furada.
O grupo, liderado por Robert Catesby, pretendia explodir as Casas do Parlamento aniquilando assim o Rei, os membros do parlamento e até possivelmente o Príncipe de Gales; todos aqueles que condenavam e faziam a vida negra aos católicos.
Para levar a cabo a revolta, o grupo posicionou 36 barris de pólvora numa cave mesmo por baixo da Câmara dos Lordes.
Mas conforme o plano evoluiu, tornou-se claro que pessoas inocentes acabariam por sair feridas ou ter mesmo um destino fatal no ataque (incluindo alguns que lutaram pelos direitos dos Católicos). Alguns dos conspiradores começaram a repensar o ataque e um deles chegou mesmo a enviar uma carta anónima a avisar um amigo para não estar no Parlamento no dia 5 de Novembro. A carta terá chegado, eventualmente, às mãos do Rei que rapidamente planeou a placagem do ataque.
No dia 5 de Novembro de 1605, numa terça-feira, Guy Fawkes, que estava na cave por baixo do Parlamento perto dos 36 barris de pólvora com um relógio, um fósforo, papel enrolado e uma lanterna, foi descoberto, torturado (revelando o nome dos outros conspiradores) e por fim executado.
Hoje, mais de 400 anos depois, continua a manter-se a tradição de celebrar, no dia 5 de Novembro, a Bonfire Night (Noite das Fogueiras que celebra a segurança do Rei), durante a qual se queimam bonecos que representam Fawkes e se solta fogo de artifício (representando o que a explosão poderia ter sido).
Não se sabe ao certo se o plano dos conspiradores poderia alguma vez ter os resultados que pretendiam. Ao que se sabe, a pólvora estaria velha e em mau estado sendo que, a haver explosão, também não teria rebentado com mais do que um pequeno espaço.
Seja como for, a traição teve um grande impacto sendo que ainda hoje, os monarcas só visitam o Parlamento uma vez por ano, sendo este alvo de meticulosa revista tradicional antes da visita.
A dúvida paira no ar, no entanto, no que respeita às motivações de celebração de cada um. Porque se há quem celebre a execução de Fawkes e dos conspiradores, outros há que queiram honrar a sua tentativa de contrariar e combater um regime opressivo.
Num cenário Britânico futurista, uma figura mascarada conhecida apenas por V comete uma série de assassinatos e tenta unir uma população adormecida contra um estado totalitário numa explosiva e épica aventura até à Mudança.
Guy Fawkes é a inspiração deste homem sem cara mas com uma alma maior do que por vezes nos cabe absorver. O centro criminal Old Bailey é o primeiro alvo do “terrorista” que se revê depois quase que um discípulo de Fawkes e prometendo a explosão das Casas do Parlamento num grito desesperado para o reerguer de uma potência submergida na apatia e opressão.
No meio deste caos organizado, acaba por surgir um elemento inesperado mas, e em aboluto, essencial. Evey, uma jovem que trabalha numa estação de televisão britânica e que acaba por tornar-se o coração desta fenomenal fita.

V for Vendetta baseia-se num comic com o mesmo nome escrito por Alan Moore (autor de Watchmen, From Hell e The League of Extraordinary Gentlemen) em 1989. A realização coube ao estreante James McTeague e o argumento foi re-escrito pelos irmãos Wachowski (famosos pela realização da trilogia de The Matrix).
É importante referir os Wachowski pelas conotações importantes e gritantes que inseriram numa história já de si tão “escandalosa” e crítica. V for Vendetta o filme consegue ser ainda mais atiçado contemplando, por exemplo, a religião como simples máscara para um desejo de poder e controle sem escrúpulos.
V for Vendetta é uma viagem arriscada porém corajosa. As sequências de acção incrivelmente bem conseguidas( pairando entre movimentos rápidos, iluminações apenas parciais e cores escuras) não têm medo de parar bruscamente para um momento de reflexão e debate filosófico.
Mas se o conceito, ou melhor, os conceitos, já que os ataques partem em diversas direcções atingindo alvos distintos, são já de si fascinantes e altamente desafiadores, ainda mais interessante é a carismática personagem que seguimos neste Big Bang da liberdade, V.
Um homem incrivelmente paradoxal. Um homem que, por trás de uma máscara esconde expressões que o seu corpo e voz acabam por exteriorizar ainda mais poeticamente. Um terrorista. Mas um terrorista que não aterroriza as pessoas. O seu objectivo é nobre; acordá-las e fazê-las ver que o poder está realmente nas suas mãos. Estamos com ele ou contra ele?

Hugo Weaving é espectacular. Sem qualquer possibilidade de expressão facial, consegue ser um homem absolutamente apaixonante e inacreditavelmente poderoso. A voz auxiliada apenas por um discurso eloquente e, no mínimo, merecedor de honras gregas, é a sua maior arma.
Do outro lado temos, como também já referi, o coração do filme na Evey de Natalie Portman. O sotaque britânico tem os seus altos e baixos, mas a potência da personagem é continuamente crescente e fascinante. V refere-se a si mesmo como uma ideia, e nós mesmos pensamo-lo assim. Evey é a parte humana da história, uma pessoa como nós encurralada nos cânticos de rebelião de uma força imparável. Desde Léon the Professional passando pelo surpreendente Garden State e pelo fabuloso Closer, Portman prova aqui e uma vez mais que é uma das GRANDES da sua geração.
V for Vendetta não é um produto de massas, e mesmo dentro do mais restrito grupo que o possa eventualmente apreciar, haverão muitos que o olharão de soslaio e mesmo com desagrado. Um filme sobre um terrorista que luta pelos outros? De que lado é suposto estarmos afinal? Do lado de um regime de ditadura? Ou do lado de um rebelde? Estas e outras questões vêm ao de cima mas não são nunca respondidas num filme intelectualmente perturbador, inquietante e proibido. Não somos arrastados pelas ideologias de V, nem somos obrigados a considerá-las certas; somos apenas desafiados a pensá-las e a reconhecê-las.
Rebelde e perigoso, não deve ser visto como modelo de conduta mas um lembrete para o poder que o medo pode acabar por dar a determinados indivíduos.

O enredo peca algumas vezes pela densidade excessiva, ou mesmo pela salada russa de ideias e críticas que nos serve, por vezes freneticamente. Mas V for Vendetta foi uma experiência marcante. Um conto sobre o grito de liberdade, um grito de esperança e um grito de verdade.
Li algures que os políticos mentem para esconder a verdade e que os artistas dizem mentiras para a revelar. Pois bem, V for Vendetta é uma mentira bem desenhada e provocadora, um trabalho de ficção escrito para espalhar verdades. Verdades que não são felizes ou reconfortantes. Verdades que nem sempre queremos ver. Verdades que preferimos mascarar com mentiras.
8/10