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A Guerra que precede o massacre
Em Junho de 1982, Israel invade o Líbano e dá início àquela que foi chamada a Primeira Guerra do Líbano. Depois de dois meses de incessantes bombardeamentos, é finalmente negociado o retiro das tropas israelitas de Beirute, capital do Líbano.
No ano seguinte, como represália pelo assassinato do adorado líder Bashir Gemayel, as milícias libanesas invadem os campos de refugiados palestinos de Sabra e Shatila e massacram os civis.
Mas o massacre não é o único evento hediondo desta Guerra. É que, afinal, a área dos campos de refugiados era controlada pelo exército israelita, e o ataque ocorreu sob o seu conhecimento. Quem serão os culpados?
Waltz With Bashir, ou Vals Im Bashir no seu título original, inicia-se mais de 20 anos depois da Guerra. A história é verídica, apresenta-se em tom de documentário e todos os que dão voz aos entrevistados são... eles mesmos (à excepção de dois).
Ari Folman (o próprio realizador do filme) é um dos ex-soldados das Forças Israelitas que se encontra com um antigo camarada do exército que lhe relata um estranho sonho recorrente que acredita estar de alguma forma ligado às suas experiências em combate. Confrontado com a bizarra situação, Folman dá-se conta que não se recorda nitidamente de muitos acontecimentos da altura. De alguma forma, as suas memórias foram recalcadas.
Numa viagem pelo mundo, Folman entrevista velhos amigos e companheiros, um psicólogo e um jornalista na tentativa de descobrir o que na sua cabeça é real e imaginado. Mas conforme os vários pedaços se juntam, ele começa a descobrir uma verdade que o vai assombrar pelo resto da sua vida.
A relação que mantemos com os filmes de animação é incrivelmente fixa e estereotipada: independentemente do tema, recorda-nos sempre algum momento da infância, a eterna idade da inocência.
Waltz with Bashir vem quebrar o vínculo com uma poderosa fita sobre a memória, o terror da guerra e o recalcamento. Alguém pensou na infância por algum momento que fosse? Eu sei que nunca me passou sequer pela ideia.
É um filme de terror humano que canta toda a vilandade e nojo pelos atrozes actos que inocentemente chamamos “humanos”. É um filme que demonstra aquilo que os horrores da Guerra podem fazer à cabeça de um homem. É um filme que ecoa a culpa não de um homem recalcado, mas de uma nação.
Folman nunca cai no erro de subir para a balança. Os factos são-nos apresentados como são, e como são serão ou não bem digeridos. Não há apontares de dedo a nenhuma das frentes. Há, como houve, factos e consequências. A essência é, claro, negativa, mas negativa para todos, num horrendo conflito com ares de pesadelo mas infelizes memórias de que foi real.
Uma espantosa visão acompanha o montar do puzzle: os soldados israelitas, banhando-se à noite no mar, completamente nus, erguem-se e caminham por um local desgraçado, esquecido por todos, menos por aqueles com a vil missão de o destruir.
Quanto à animação, para os mais esquisitos, far-me-ei valer de um célebre dito de Fernando Pessoa: “primeiro estranha-se, depois entranha-se”. E é verdade que assim é contribuindo ela mesma para o ambiance surrealista porém terrivelmente cru.
Muitos filmes ousam já utilizar imagens extremamente chocantes. Outros nem tanto. Mas todos eles se mantém num caminho tão literal que não são poucas as vezes que acabam por não nos dizer nada de todo. Foi preciso chegar uma animação para nos provocar um autêntico choque cerebral. O final de Waltz with Bashir é desconcertante e desarmante: de um momento para o outro, a animação transfigura-se em imagem real e, apenas por breves minutos, imagens reais do massacre tomam conta do ecrã.
A viagem de Folman é orientada por uma verdade que ninguém que conhecer, nem mesmo o próprio, mas que necessita de ser desenterrada. E aí está a verdadeira e horrível força de Waltz with Bashir. Uma animação que o é, mas ao mesmo tempo não o é. Algo que nos reduz à insignificância do mais primário medo humano. Um medo que, mesmo que não confessemos, envolve o coração de todos os Homens.