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"I love you but you have no idea what you are talking about."
O panteão dos grandes pares românticos encabeçado pelos eternos Romeu & Julieta prepara-se para acolher os seus mais recentes integrantes: em todo o seu esplendor, apresentamos Sam & Suzy, os fugitivos apaixonados de uma das histórias de amor mais puras do cinema contemporâneo: Moonrise Kingdom.
Suzy e Sam são duas crianças de doze anos prestes a descobrir a ponta do icebergue da aventura amorosa. Cada um tem a sua estranheza inocente, sendo ambos indivíduos que não se enquadram na totalidade da pintura que integram. Um dia, durante uma produção teatral da escola da “Cheia de Noé”, a faísca do amor é lançada, até ao dia em que inúmeras palavras trocadas no papel de uma carta culminam na fuga conjunta.
Sam foge dos Escuteiros Khaki, onde é um excomungado apesar das habilidades exemplares; Suzi foge do casamento em rutura dos pais. A estrutura é a de um conto de fadas: Sam é um Peter Pan cujas aptidões visam única e exclusivamente a proteção da sua Bela Adormecida resgatada do castelo do mal, e tudo isto se desenrola enquanto a comunidade adulta da pequena ilha se convulsa na sua procura.
Moonrise Kingdom, que podia muito bem ter-se chamado “Guia do Amor para Crianças”, é largamente contado sob o ponto de vista das crianças e a partir da forma como elas veem o mundo.
Estilizado até ao tutano, projetado até ao mais ínfimo detalhe e impassível por todo o caminho percorrido, Moonrise Kingdom é inequivocamente um filme de autor, e esse autor só poderia ser, neste mundo ou noutro, Wes Anderson.
Como o icónico crítico Roger Ebert questionou, “haverá sítio mais entusiasmante para uma ideia nascer e florescer do que na mente de alguém como Wes Anderson?”. Dificilmente.
Anderson é alguém que vê o mundo alegremente desbotado, um mundo onde os livros de capa rija ainda não deram lugar aos Kindles e Ebooks desta vida, e onde as crianças, desgarradas desses inventos tecnológicos tantas vezes macabros, têm a possibilidade de ser verdadeiramente inocentes.
Esta ode destrambelhada à intensidade do primeiro amor é um projeto de descoberta constante e fascinante para o espectador – o detalhes são de requinte tal que não podem ser de forma alguma ignorados.
O argumento foi escrito pelo próprio Anderson em parceria com Roman Coppola, e que argumento! Versando sobre a forma como o Amor nos verga e o quão complicado pode ser, coexiste num universo de personagens excêntricas e cenários capazes de aquecer os corações de uma sala inteira.
O objeto pode ser aparentemente pequeno, mas Anderson amplifica o core emocional para que a audiência se afete cada vez mais pelo destino deste casal predestinado. A “imaturidade” de Anderson representa aqui um papel crucial, e nunca num mau sentido. Ao mesmo tempo que o realizador reconhece que estes personagens foram profundamente feridos pela vida, mantém a crença de que o Amor pode ser o seu salvamento último.
O otimismo de Moonrise é do mais cristalino que pode existir, porque é aquele que sobrevive mesmo quando nem tudo corre bem, e que aprende a coexistir com a tristeza e a dificuldade. A melancolia que acompanha Moonrise Kingdom está muito ligada à inveja sentida pelos adultos desesperados pelo regresso dos heróis. O que fica é a saudade inabalável do descuido, da inocência, do amor e da liberdade da juventude.
A banda Sonora, que alterna entre maravilhosas composições de Alexandre Desplat, pedaços escolhidos a dedo de “The Young Person's Guide to the Orchestra" de Benjamin Britten e outras peças musicais, que se unem à narrativa de forma homogénea, quase como a sua segunda voz.
A fotografia a 16mm de Robert Yeoman – que tantas vezes faz lembrar um diorama ou um postal gasto pelo tempo - é material retirado de um sonho: as florestas, os panoramas oceânicos e as paisagens míticas da ilha de New England são reconfortantes e infinitamente convidativas, na sua coloração dourada simplesmente deliciosa.
Do fundo dos óculos fundo-de-garrafa, Jared Gilman é glorioso como Sam, enquanto Kara Hayward é absolutamente desoladora. Juntos, estes garotos de doze anos interpretam garotos de doze anos, e por mais simplista que esta assunção possa parecer, penso que o momento em que se permitirem deitar os olhos sobre este título irão compreender do que vos falo. Além de que é incrivelmente saboroso observar dois jovens que não foram esculpidos até à exaustão para parecerem integrantes do Clube Disney.
O resto do elenco é um caso extreme de foras-de-série: Bruce Willis relembra-nos que também sabe representar, Edward Norton é surpreendente como o líder dos Escuteiros, Bill Murray (um habitué de Anderson – fez seis dos sete filmes do realizador) oferece-nos um Walt cheio de nuances de tirar a respiração incorporando uma espécie de Homer Simpson a antidepressivos, Frances McDormand é exímia na linguagem corporal que transmite, e para não nos alongarmos até todos os participantes, Tilda Swinton, como a personagem que mais perto nos surge de uma vilã nesta trama, com uma representante dos serviços sociais maléfica que, ironia das ironias, se chama Serviço Social.
O Cinema de Anderson sempre foi caprichoso e extravagante, mas Moonrise Kingdom tem a si associada uma natureza deliberadamente travessa, uma teatralidade aparentemente pouco natural que pode, a modos de má vontade, ser considerada asfixiante. Intendendo implicar, qualquer um pode dizer que esta ilha de desajustados é um manifesto alheamento do mundo real, mas para todos aqueles de nós, verdadeiros aventureiros do dia-a-dia, que guardamos religiosamente o mapa secreto da procura da felicidade numa caixa de sapatos debaixo da cama, esta “fonte da juventude” representa uma alegria que não poderá nunca ser eclipsada.
À falta de melhor analogia, é como uma road-trip às lembranças do passado, que nos permite abrir a janela do carro, por a cabeça de fora, e respirar fundo o ar puro da montanha até os pulmões encherem. E quando, ao expirar, os olhos se reabrem ao mundo, tudo o que existe é um sentimento de inexplicável e imensurável libertação.
9/10