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"We're not bad people. We just come from a bad place."
O sexo e, por associação lógica, o vício que pode estar associado a esta prática é ainda um tabu na cultura ocidental, particularmente se resolvermos atravessar o Atlântico até terras de um tio que apesar de se chamar Sam, bem podia ser conhecido por Púdico. Curioso é o facto de estarmos bem habituados a sermos expostos a doses industriais de violência e mortes sangrentas, mas o sexo - que até é um processo biológico naturalíssimo, baseado nos impulsos mais primitivos do Homem – já é uma ordinarice que só tem ordem de soltura relativa quando serve para ilustrar situações caricatas ou poéticas numa qualquer comédia ou drama românticos.
É claro que é fácil rejeitar a ideia na base do argumento: “como é que é possível ter pena de alguém que gosta da fazer sexo e ainda por cima o faz muitas vezes? Especialmente se esse alguém tem o aspeto de Michael Fassbender. Pelo amor dos santinhos!”. Mas se não estão convencidos da importância social do tema, lembrem-se que a Oprah já fez um programa sobre isso; e quando a Oprah faz um programa sobre alguma coisa, é porque é importante.
Com trinta e poucos anos, uma vida profissional de sucesso (apesar de não sabermos muito bem baseada em quê, sabemos que rende bem) e um apartamento de luxo em Nova Iorque, Brandon está aparentemente a viver o sonho. Contudo a fachada perfeita esconde uma compulsão possivelmente temerária de todos aqueles com quem se relaciona. Mas numa noite fria, o quotidiano rigidamente planeado de Brandon é posto à prova quando a irmã rebelde Sissy lhe bate à porta.
Shame é complexo, perturbador e penoso, mas também um filme excecionalmente económico: tudo o que nos surge no ecrã conta.
A natureza angustiante da situação de Brandon tem um reflexo aterrador nas duas sequências que mostram o seu lado mais sensível e humano. Quando está num encontro com uma colega de trabalho, a relação parece ser a de um casal normal, onde se discutem temas íntimos como relacionamentos passados e compromissos. Há todo um sentido de inocência que os segue até ao quarto de hotel, onde até os preliminares surgem com a estranheza de uma curiosa primeira-vez, até ao término abruto e sexualmente insatisfatório. O sexo é, para Brandon, rápido, duro, sujo e anónimo; a gentileza e o afeto são, por isso, enormes entraves ao satisfazer de uma necessidade violenta.
A jornada amoral e anti-heroica e a personagem “anestesiada” fazem lembrar, em certa medida, Patrick Bateman de American Psycho (2000). Mas se Bateman se visse com uma motosserra na mão e um punhado de mulheres nuas era a pessoa mais feliz do mundo. Já Brandon, por contraste, não encontra a felicidade em nenhum dos orgasmos que atinge, seja com prostitutas baratas, ou com as várias masturbações diárias que esconde nas casas-de-banho do emprego. O sexo de Brandon é meramente funcional, e como em qualquer outro vício, o prazer já há muito se foi, ficando apenas a necessidade gritante de alimentar o vício titânico.
McQueen exige muito da sua audiência, algo que sempre atraiu inequivocamente esta que vos escreve. Mas a perseverança e a paciência – que também é precisa para associar e relativizar muitos acontecimentos que não são nunca explicitados – são eventualmente recompensadas com um ensaio reflexivo brutal.
Além de tudo isto, o que choca é a exposição da vulnerabilidade e fraqueza masculina, a miséria abjeta que tantas vezes é ignorada no Cinema.
Quanto ao pano de fundo, merece inequivocamente um apontamento: Nova Iorque é uma metrópole fria, com metros a abarrotar de possíveis conquistas sexuais e o anonimato de milhões de transeuntes, põe em prática o famoso dito que contrasta a existência num local apinhado, com a experiência da solidão mais profunda, sentimentos estes amplificados pelo uso de takes longos e estacionários que dilatam o sentido de tensão e isolamento de Brandon.
A música tem uma utilização excecionalmente poderosa, com a fluidez dos momentos criados pela interpretação de Glenn Gould das composições de Bach. A sordidez da vida de Brandon é descrita na perfeição pelos acordes lentos e orquestrais da banda sonora original de Harry Escot, enquanto a fotografia fria de Sean Bobbitt retira a vitalidade de Nova Iorque, tornando-a uma cidade propensa à coabitação de fantasmas, como Brandon.
Michael Fassbender explora os aspetos mais lúridos e tortuosos da vida de Brandon com uma entrega física e emocional que é, por vezes, quase desconfortável de assistir. Numa performance silenciosamente furiosa, Fassbender é desconcertante. E porque protagonista bem acompanhado vale por dois, Carey Mulligan traz-nos o contraponto perfeito com a dramática, quase teatral, Sissy, naquela que é, talvez, a sua melhor performance desde An Education (2009).
Shame é demasiado cru para ser banal, apesar de o arco da má conduta não ser, nem de perto nem de longe, original. O que o eleva é justamente a abordagem impressionista de McQueen. É um arco brutal de fixação que alcança uma amálgama de emoções e uma experiência fascinante, ainda que negra.
É a erosão da alma e a humanidade na sarjeta em 100 minutos, e no final, não surgem soluções ou resoluções aparentes. O que fica é, como na própria vida, a dúvida se o monstro do vício – e todas as suas decorrentes consequências – será algum dia vencido. Isto porque nem sempre somos capazes de levar a melhor sobre os nossos demónios.
8.5/10